Na solidão da madrugada escura, o marido rolava na cama e gemia
gemia gemia, atormentado por uma pedra no rim. A mulher, ao lado, dormia como
uma outra pedra.
Diante de um
gemido quase grito, ela despertou.
– Você está sentindo alguma dor?
– Sim.
– Tomou o remédio?
– Tomei.
A mulher voltou a dormir, pois nada mais podia
ser feito. Pela manhã, ao acordar de uma noite bem dormida, inteirou-se do
estado de saúde do marido, preparou-lhe um café restaurador, e contou o sonho
que tivera.
– Sonhei que ouvia seus gemidos, e perguntei se
estava sentindo alguma dor. Você me respondeu que não. Então continuei
dormindo.
Duas ideias me ocorrem diante desta realidade.
A primeira, bastante óbvia, é de que se trata de um ótimo exemplo de sonho
guardião do sono. Se o marido não sentia dor alguma, a mulher não precisava
despertar.
A segunda, pouco mais elaborada, porém bastante
evidente, e que pode incomodar as almas mais delicadas, diz respeito à natureza
humana. Depois de A interpretação dos sonhos (1900), de Freud, não resta dúvida
de que o sonho é manifestação do Inconsciente. E que o Inconsciente é o lugar
dos instintos, a nossa natureza mais primitiva, mais verdadeira. E esta
natureza reza: primeiro eu, depois o outro.