segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Uma obra de arte!

A foto do dia.



Meu nome é Blimunda!

Meu nome é Blimunda!




              Tivemos já uma gatinha que se chamou Blimunda. Fugiu, para nossa tristeza.
            Agora, a nova moradora, uma Shih Tzu de 50 dias, torna a receber o nome de Blimunda.
      Qual é o nome dela?
      Blimunda.
      Blimunda?!
      É.
O diálogo se repete a cada nova apresentação. Causa estranheza o nome. Sinal que os apresentados nunca leram o magistral Memorial do Convento, de José Saramago. Isso sim, é uma pena.
Transcrevo pequeno trecho:

“Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltazar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltazar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e foi o grito tal que Baltazar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não, Aí tens, come, e Baltazar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de travesseira.”

            Pronto, quem ainda não sabe, fique sabendo que Baltazar Sete-Sóis e Blimunda são marido e mulher, repartem o mesmo leito, mas ainda perdura um grande segredo entre eles, por que Blimunda precisa comer um naco de pão ao despertar, antes mesmo de abrir os olhos?
            A linguagem é deliciosa, melhor não pode haver!
            Agora, eis o diálogo que eu gostava de ouvir:
      Qual o nome dela?
      Blimunda.
      Ah!, a mulher o Memorial do Convento?
      Isso mesmo!
      Que lindinha!




Blimunda


...
– que lindo!
– não é!
– macho ou fêmea?
– fêmea.
– qual o nome dela?
– Blimunda.
– o que?
– Blimunda.
– Blimunda?!
– isso.
– de onde você tirou isso?
– do Memorial do Convento?
– de onde?
– do Saramago.
– ah, aquele espanhol, não é?
– português.
– português?
– sim.
– e quem foi essa tal de Blimunda?
– a mulher do Baltazar.
– já sei, um dos 3 reis magos!
– upa lelê...
...

Mia Couto maduro



             Quando me deparo com livro novo na bancada de qualquer livraria, depois de examinar a capa, título, nome do autor, leio a primeira página. Se gosto do estilo, da forma – independentemente do conteúdo –, geralmente compro.
            Com o novo livro do Mia Couto foi diferente. Bastaram-me as duas primeiras sentenças:

“Já muita coisa foi vista neste mundo. Mas nunca se encontrou nada mais triste que caixão pequenino.”
           
            A imagem que construí a partir dessas poucas palavras foi devastadora – a tristeza de que somos tomados à vista de um caixãozinho branco. Se uma criança morreu, é provável que um pai e uma mãe estejam sofrendo a pior dor que se pode sentir neste mundo, a dor da perda de um filho.
            Antes de prosseguir nesta crônica, devo confessar que o Mia Couto do início de carreira nunca foi dos meus prediletos. Fã ardoroso de Guimarães Rosa (outro dia aprendi com um amigo que “fanático” deriva de “fã”), pressentia na linguagem do moçambicano uma imitaçãozinha Roseana, o que me parecia sacrilégio imperdoável.
            Penso que ele vem abrandando a forma com o passar do tempo, livrando-se da influência poderosa de Guimarães Rosa, porém conservando o gosto pela invenção das palavras, o que de forma alguma é pecado. Tantos outros o fazem em nossa língua, dentre eles o mestre Manoel de Barros.
            No novo livro em questão, no segundo parágrafo do primeiro conto, O não desaparecimento de Maria Sombrinha, do livro Contos do nascer da Terra (Companhia das Letras, 2014), lê-se um Mia Couto suave, com o tal abrandamento de linguagem:

“Deu-se o caso numa família pobre, tão pobre que nem tinha doenças. Dessa em que se morre mesmo saudável. Não sendo pois espantável que esta narração acabe em luto. Em todo o mundo, os pobres têm essa estranha mania de morrerem muito. Um dos mistérios dos lares famintos é falecerem tantos parentes e a família aumentar cada vez mais.”

            O livro compõe-se de 35 contos breves, muitos deles publicados originalmente em jornais e revistas, quase todos revistos e modificados pelo autor. Agora que tenho dedicado algumas horas semanais à chamada arte culinária, não posso deixar de fazer referência ao conto intitulado A viagem da cozinheira lacrimosa, que temperava a comida delicadissimamente com o sal das lágrimas. “É comida temperada a tristeza”, dizia ela.
            Vale a pena conferir os Contos do nascer da Terra. (Em tempo, a capa de Claudia Espínola de Carvalho é lindíssima!)