terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Cachorro Louco


Durval era conhecido como um sujeito bruto. Um brutamontes, diziam alguns; um troglodita, afirmavam outros. Aqueles que já haviam sido vítimas daquele seu modo de ser não faziam por menos: um verdadeiro cavalo! Durval não era mau sujeito, era apenas rude, muito rude. Não foi à toa que recebeu a alcunha de Cachorro Louco, da qual ele mesmo se orgulhava, Apelido de macho, exclamava estufando o peito. A origem do cognome tem uma história que merece ser contada.
            Tudo começou quando Adalberto prometeu aos três filhos pequenos que lhes daria um cãozinho de presente logo que se mudassem para a casa nova. Consumada a mudança começou o Eu quero, Porque quero, Você prometeu, Agora tem que cumprir. Para dizer a verdade, Adalberto também queria o animal, saudoso dos tempos de criança e de seu inseparável Lobo, um mestiço de pastor alemão.
            Quando Adalberto comentou com Roberto, amigo e colega de trabalho, sobre a insistência dos filhos, ouviu a inesperada resposta, Pois minha cadela acaba de parir oito lindos cachorrinhos e desde já um é seu, pode passar lá em casa e escolher o que mais lhe agradar. Leve Marisa e as crianças, completou o amigo.
            No domingo seguinte, lá estavam pais e filhos na casa do amigo, excitadíssimos com a expectativa de ganhar um animalzinho. Qual a raça? –  perguntou o filho mais velho. Diana é um Fila brasileiro, com pedigree e tudo, respondeu Roberto, mas o pai ninguém sabe direito... Suspeitamos de um mastim do vizinho da frente; um dos dois deu uma escapadela e daí, já viu...
            Adalberto assustou-se com as informações, mas preferiu o comentário filosófico, Como na vida: a mãe a gente sempre conhece; já o pai, é sempre incerto... Marisa não gostou do comentário nem do tamanho de Diana, preocupada com o porte e a ferocidade do  filhote depois de crescido. Mas podem ficar sossegados, são cachorros de índole muito boa e adoram crianças, tranquilizou Roberto, desejoso de se desvencilhar da ninhada. E eram mesmo lindos os cachorrinhos, Muito mais bonitos que os bebês humanos, que mais se parecem com um joelho, aparteou Roberto. O filho mais novo de Adalberto perguntou se não podiam levar todos para casa, e não compreendeu as gargalhadas dos adultos.
            Na semana seguinte voltaram para fazer a escolha, os filhotes com um mês de idade, gordinhos de fazer gosto, umas lindezas. Escolheram um macho amarelo com manchas castanhas, peito largo, patas grossas, e uma cabeçorra escultural. Após uma semana de intermináveis discussões para a escolha do nome, foi preciso uma votação para se chegar ao resultado final, derrotados ambos os pais diante da unanimidade dos filhos: Rambo, o nome do mais novo morador!
            Rambo tornou-se o centro das atenções, alegre, ativo, brincalhão, um leão na hora da comida. Crescia a olhos vistos! Em uma semana já havia devorado cinco sapatos de Marisa e estraçalhado uma camisa do Flamengo de Adalberto. Para a surpresa de Adalberto, Rambo nunca latia, apenas rosnava, porém com uma ferocidade de cachorro grande, bastava contrariá-lo e lá vinha um rosnado de meter medo.
            Com pouco mais de um ano de idade Rambo tornou-se o terror do bairro, temido por todos, apelidado de Monstro. Havia matado dois yorkshires do começo da rua, arrancado o rabo de um pitbull, comido a orelha de um velho pastor, além das mordidas que nenhum dos três filhos de Adalberto tinha escapado. Era preciso desfazer-se de Rambo, para a tristeza geral. O animal vivia preso no canil, dia e noite, o que o tornava ainda mais incontrolável.
            Adalberto procurou pelo amigo Roberto, não para queixar-se, mas para pedir conselho, O que eu faço com o Rambo, Roberto? Deixa comigo, Adalberto, ouvi dizer que o Durval está precisando de um cachorro bravo para tomar conta da fazenda; deixa que eu falo com ele. Mais uma vez Adalberto assustou-se, conhecia bem a fama de Durval.
            Às oito da manhã de um domingo de sol toca a campainha, alguns ainda na cama, era o Durval: Cadê o Monstro? Nem um alô-como-vai, nem um bom-dia, foi direto ao assunto, Vim buscar o cachorro. Adalberto assustou-se pela terceira vez.
            Foram ao canil para a apresentação da fera. Abre o portão, disse Durval, seco, curto, naturalmente grosso. Mas o cachorro é muito bravo, Durval, nem sei o que pode fazer com você aí dentro, balbuciou Adalberto. Abre o portão, porra! Mas Durval... Caralho, abre o portão Adalberto!
            Aberto o portão, Durval entrou e fechou-o atrás de si. Rambo partiu pra cima, num salto olímpico e certeiro em direção ao pescoço de Durval, a bocarra escancarada, o ruidoso rosnar. Marisa, ao presenciar a cena, desmaiou. O menino menor começou a chorar. Adalberto prestes a ter um infarto, permaneceu paralisado.
            Durval, que nunca perdeu o autocontrole, acertou um murro no focinho do animal com tamanha violência que deixou Rambo caído no chão do canil, prostrado e ganindo de dor, sangrando, como se alguma coisa houvesse se quebrado em seu canino nariz. Pronto Adalberto, pode abrir o portão, disse Durval; traga uma coleira e uma guia.
            Assim foi feito. Colocada a coleira em Rambo – animal mais dócil e obediente nunca houve –, Durval levou-o até o banco da frente da caminhonete, sentou-o ao lado do motorista, Vou levá-lo para a fazenda, Bom dia a todos. Adalberto, Marisa e os meninos, pasmos, responderam com um inaudível Bom dia.
            Daí em diante Durval passou a ser conhecido como Cachorro Louco, apelido do qual muito se orgulhava, Não é para qualquer um, Não é para qualquer um.
            

E o jogo terminou empatado


A crônica de Janio de Freitas na Folha de hoje traz o sugestivo título de Brasil embrutecido. (1)  Escreve o articulista:

“Estamos, no Brasil, em um agravamento da brutalidade que não cabe mais nos largos limites do classificável como violência urbana. E não basta dizer que nada é feito contra tal processo. O que se passa, de fato, é que nem sequer o notamos. Convive-se com o agravamento como uma contingência incômoda, em seus momentos mais gritantes, mas natural, meras desordens da desigualdade social.”
           
O acontecimento da vez é o brutal assassinato de um torcedor em um ponto de ônibus, por supostos torcedores rivais. Difícil acreditar que o motivo real possa ser um jogo de futebol que, diga-se de passagem, terminou empatado, ou seja, sem vencedores ou perdedores. Nem mesmo a tão falada desigualdade social pode ser responsabilizada, sugere Freitas:

O agravamento da brutalidade no Brasil é um processo em si mesmo. E não está só nos territórios da pobreza. A própria incapacidade de percebê-lo é um sintoma do embrutecimento sem distinções sociais, econômicas e culturais. Outros sintomas poderiam ser notados – na deseducação, no rebaixamento individual e coletivo dos costumes, em muito do que os meios de comunicação tomam como modernidade, na política. Até onde a elevação do trato entre suas excelências parecia inexaurível – no Supremo. 
...À espera do ônibus ou dentro do carro, branco, negro, pobre, rico: o Brasil se embrutece. E o Brasil nem sequer se nota.”

            Para que se consumasse o Holocausto foi necessário um articulado embrutecimento das tropas alemãs, para que pudessem fazer o que fizeram sem enlouquecer. Primo Levi descreve com maestria tal situação em seu magnífico livro É isso um homem? Trata-se de um processo de desumanização, e assim fica mais fácil liquidar o inimigo não-humano.
            Ao que se saiba, ainda não estamos em guerra. Mas, o que é pior, estamos tratando como inimigo o sujeito que simplesmente torce por outro time de futebol. O que não é crível. Só faltou o fundo musical – a Nona de Beethoven – durante o espancamento.
            Embrutecimento tem a ver com deseducação. Se o espírito não se aprimora, o bruto animal fala mais alto. Em linguagem popular, o bicho pega... Porém, as “providências” tomadas pelo governo falam em repressão às torcidas organizadas, aumento do policiamento dentro e fora dos estádios, endurecimento das leis, ou seja, tratam apenas das consequências. O que há de levar a mais embrutecimento.
            Educar é preciso, em todos os sentidos. Este o verdadeiro remédio contra o embrutecimento.