A coluna de Marcos Nogueira para Cozinha Bruta, da Folha de S. Paulo (22 out 2020), intitulada “Restaurante vende garrafa de R$ 11 mil, serve vinho da casa e cliente nem percebe”, há de interessar aos bebedores de vinho, além de ser deliciosa. Relata ele:
“Deu na revista inglesa “Decanter”, uma das publicações mais sérias sobre vinhos no mundo: em Nova York, os garçons de um restaurante serviram por engano o vinho da casa, de R$ 100, a um grupo que havia pedido uma garrafa de R$ 11,2 mil. Foi no Balthazar, bistrô do SoHo que atrai tanto turistas durangos quanto gente com dinheiro.
Duas mesas chegaram mais ou menos ao mesmo tempo. Numa delas, um casal jovem que pediu o vinho mais barato de todos; na outra, foi comandada uma garrafa de Château Mouton-Rotschild 1989, o item mais caro do restaurante. Os clientes eram gente de Wall Street. Os garçons puseram os dois vinhos em decanters (garrafas sem identificação) idênticos. Serviram o vinho barato para os caras do mercado financeiro, e o outro para o casalzinho que só queria comer e dar risada. ...Nenhuma das mesas percebeu a troca. Um dos sujeitos que pediram o vinho caro teria chegado a elogiar a “pureza” do vinho de cem contos. Foi a própria equipe do Balthazar quem detectou a mancada – e deixou os vinhos de graça para todo mundo.”
O assunto é importante, tanto que mereceu a crônica de hoje de Hélio Schwartsman, também para a Folha (26.out.2020), com o bombástico título – ele é especialista em manchetes! – A enologia é uma fraude? Depois de comentar sumariamente sobre o que escreveu Marcos Nogueira, Schwartsman expõe sua ideia:
“O problema, como sempre, são os nossos cérebros. Quando eles não têm informações suficientes para emitir um juízo, catam qualquer pista que esteja à mão, seja ela relevante ou não, e proferem seu parecer como uma conclusão irrefutável.
A dificuldade, no caso da enologia, é que o paladar e o olfato humanos não são bons o bastante para julgar vinhos, pelo menos não no nível que os "sommeliers", com seu vocabulário rebuscado e esnobe, fazem crer que é possível. Aí o cérebro, para não ficar mal, apela para rótulos, preços, críticas etc.”
Então Schwartsman recorre à Ciência:
“Estudos da psicologia do gosto, iniciados nos anos 60 por Rose Marie Pangborn, só não acabaram de vez com a reputação da indústria enológica porque não são muito divulgados. Pangborn mostrou que bastava adicionar um pouco de corante a vinhos brancos para deixar os especialistas completamente perdidos.
Na sequência, outros trabalhos revelaram que, em copos escuros, estudantes de enologia não conseguem mais distinguir vinhos brancos de tintos e que basta trocar os rótulos das garrafas para que especialistas rasguem elogios a vinhos "objetivamente" medíocres.
No caso de Nova York, a pista mais conspícua era o preço.”
Longe, muito longe de me considerar um enólogo, adquiri certo hábito que talvez possa interessar. A primeira prova, depois que o vinho é colocado em um decanter, pode ser enganosa. Degusto, faço minha avaliação, mantenho o silêncio, e prossigo bebendo. Lá pelo meio da garrafa, posso confirmar a primeira impressão ou descartá-la completamente. (Às vezes nem chego ao final da garrafa.)
Não sei como explicar tal experiência. Talvez o cérebro precise de algum tempo para chegar à conclusão definitiva e sempre pessoal sobre a qualidade do vinho.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/10/a-enologia-e-uma-fraude.shtml