Eunice foi
assassinada com cinco tiros e requintes de crueldade. Seus documentos foram
roubados, de modo que a identificação que restou, pela inspeção grosseira do
corpo, foi a de que se tratava de um travesti. Após a necropsia no Instituto
Médico Legal o corpo foi enterrado como indigente. O atestado de óbito trazia
apenas o nome Homem.
Um mês
depois, com a ausência da moça, a família, residente em estado distante, chegou ao Rio de Janeiro, onde o
crime foi cometido, para desvendar seu desaparecimento. Constatado o assassinato,
restou aos familiares reclamarem o corpo para oferecer sepultamento digno à
filha. Durante uma semana, mãe e irmã da morta postaram-se à entrada do IML, na
tentativa de serem atendidas. A burocracia para que o nome de Eunice constasse
do atestado de óbito foi verdadeiro pesadelo. A família continua lutando para
consegui-lo.
Como se
tratava de morte de suposto indigente, nenhuma investigação policial foi deflagrada.
Passados muitos dias, as pistas do crime esfumaçaram-se por completo. Caso
encerrado.
Celso
Alfredo, detetive particular, tomou conhecimento desses fatos pelas páginas
policiais de jornal popular do Rio. Desde logo percebeu que não conseguiria
qualquer recompensa pecuniária oriunda da pobríssima família de Eunice; mesmo
assim, por razões ainda obscuras para este narrador, interessou-se pelo caso.
Não foi
difícil descobrir o ponto onde Eunice prestava serviços sexuais pois o local
onde o corpo foi encontrado estava registrado no boletim de ocorrência
policial. Na primeira visita, Celso Alfredo foi muito mal recebido pelas
colegas de trabalho da vítima, desconfiadas das intenções do detetive. Depois
de muita conversa e alguns agrados, Judite, que compartilhava um quarto na Lapa
com Eunice durante o último ano, resolveu abrir o bico. Foi preciso que o
detetive a levasse a um restaurante caro na Rua Barão da Torre, em Ipanema,
especializado em frutos do mar, local bem distante da cena do crime, para que
ela se dispusesse a falar.
Logo no
início de seu relato a moça derramou lágrimas sinceras, considerava-se amiga da
morta, vítima, segundo ela, de homem poderoso, influente, riquíssimo, sempre
dirigindo um carrão – cada semana um carro diferente! –, mas que não passava de
um maníaco sexual. Ela havia alertado a amiga sobre o perigo daquele
relacionamento, porém Eunice não lhe dera ouvidos, engambelada pelo ricaço. O
problema era que ela nunca soubera o verdadeiro nome do homem: Eunice chamava-o
de Príncipe. Fotos dos dois juntos em algum passeio, nem pensar. Prostitutas e
travestis que exerciam na área nunca viram o tal Príncipe.
Celso
Alfredo estava diante de um caso difícil. O que os jornais não noticiaram nem
Celso Alfredo revelou a Judite foi um detalhe insólito do laudo de necropsia: a
ausência parcial de ambas as orelhas da vítima, que apresentavam marcas de
dentadas, como se tivessem sido comidas pelo assassino. Quando Judite chamou o
homem de maníaco sexual, diante das orelhas comidas, dos cinco tiros de pistola
9 mm, e das 38 facadas distribuídas por todo o corpo, o detetive ligou os
pontos do quebra-cabeça e sentenciou, Príncipe é um psicopata perigoso.
Passaram-se
dois meses quando ele resolveu acreditar que a alcunha de Príncipe poderia ser
uma pista concreta para a solução do enigma, e não apenas um apelido carinhoso
entre Eunice e o amante. Como todo detetive, possuía uma rede fabulosa de
contatos, que foram todos acionados: Você conhece alguém chamado Príncipe?
Ninguém respondeu. Celso Alfredo vasculhou a Internet incansavelmente e nada. Pensou em desistir. A família já
havia enterrado o corpo e regressado para a longínqua cidade onde residiam. Por
que ele haveria de continuar quebrando a cabeça diante de um crime
aparentemente insolúvel? Mas como permitir que um psicopata desse quilate andasse
por aí, à solta? Sem dúvida, ele voltaria a matar, matutava o detetive, um
homem de escrúpulos.
Batata!,
diria Nelson Rodrigues! Quatro meses desde a morte de Eunice os jornais
noticiaram que um travesti conhecido pelo nome de Marluce fora encontrado morto
num hotel barato do Estácio, com ambas as orelhas decepadas rente ao crânio, e
que as mesmas não foram encontradas pelos peritos que recolheram o corpo. A
Polícia não ligou os dois crimes – o primeiro, de fato, nunca fora investigado
– mas Celso Alfredo matou a charada sem pestanejar, Aí está o nosso homem!
O incansável
detetive repetiu o método anterior, descobriu o ponto do travesti, localizou as
colegas de Marluce, não foi bem aceito de início, insistiu, levou Lucimar,
amiga da nova vítima, para almoçar na Barão da Torre, e ficou sabendo que Marluce
tratava seu homem por Príncipe! Era a prova que necessitava para acionar a
Polícia. Procurou então seu amigo Espinosa, Delegado Titular em Copacabana,
para quem relatou em minúcias os fatos até então por ele investigados. Vamos
atrás desse Príncipe, homem poderoso, influente, riquíssimo, sempre dirigindo
um carrão – cada semana um carro diferente! –, mas que não passa de um maníaco
sexual, afirmou Espinosa, repetindo as palavras de Judite, Essa mulher sabe das
coisas.
A despeito
da disposição, prestígio e fama do Delegado, verdadeira lenda em Copacabana,
personagem de romances policiais de autor de renome, ainda mais auxiliado por
Celso Alfredo, agora convidado a frequentar a cantina de comida italiana no
Bairro do Peixoto, as buscas deram em nada.
Até que,
depois de dois meses de investigação, Espinosa foi informado de que uma câmera
de rua postada na Lapa havia flagrado a passagem de um Lamborghini branco, no
início da madrugada, exatamente no dia da morte de Marluce. É um dos carros do
Príncipe, o nosso perverso milionário, exclamou Celso Alfredo. Espinosa não
moveu sequer um músculo da face, enigmático.
Localizaram
com facilidade o dono do carro, residente na Vieira Souto, prédio em que cada
apartamento ocupava todo um andar, todos com vista para o mar, seis andares ao
todo. Espinosa desceu até a garagem e encontrou pelo menos quinze automóveis de
luxo, incluindo o Lamborghini branco. Com a autorização do porteiro, subiram
até o sexto andar para informal e preliminar conversa com o Dr. Álvaro Martins
de Castro Lima e Albuquerque, proprietário do carro. Dr. Álvaro apresentou o
álibi perfeito: estava em Paris no dia do crime, e o passaporte era a prova
definitiva de que falava a verdade. Celso Alfredo quis esticar a conversa mas
Espinosa cortou-lhe a fala, certo de aquele homem não era o facínora que
procuravam.
Era preciso
entrevistar os demais moradores do prédio, gente de posses, donos de carros de
luxo e apartamentos de frente para o mar de Ipanema. Desceram até a portaria do
Edifício Chopin para obter informações com o porteiro, negão de metro e noventa
de altura, sorriso largo, dentes alvíssimos, malhado, bonito o homem, além de simpático
e prestativo, e que morava no próprio prédio, em um quartinho nos fundos, O
banheiro fica do lado de fora, mas tudo é muito limpo, muito arrumado, informou
o funcionário.
Espinosa
anotava em um pequeno caderno o nome dos moradores e os respectivos apartamentos
quando, de repente, abre-se a porta do elevador e sai uma senhora muito bem
vestida, nos seus sessenta anos, coberta de joias, cabelo arrumado, belo lenço
colorido no pescoço, sapatos Loubotin de sola vermelha, e com voz clara e
altissonante pergunta ao porteiro, Príncipe, Você Pode Trazer O Meu Carro?
Disfarçadamente
Espinosa pediu apoio policial pelo celular, mas conseguiu que Príncipe lhes
mostrasse o quarto onde morava, enquanto era submetido a um despretensioso
interrogatório por parte de Celso Alfredo, Há quanto tempo trabalha no Edifício
Chopin?, Onde nasceu?, Tem família no Rio?, enquanto o Delegado vasculhava com
os olhos o pequeno recinto. Súbito, Espinosa dirigiu-se a um canto do aposento que
parecia com uma cozinha, abriu a geladeira Consul, examinou-a com cuidado, e
perguntou ao Príncipe, O que você pretende fazer com essas duas orelhas?
Temperar o feijão, respondeu Príncipe calmamente.