Não havia nesse mundo alguém com a pureza de Beatriz.
Na flor de seus vinte anos, era considerada pela vizinhança e por toda a pequena cidade do interior, uma santa, fama que transbordava para além das fronteiras do estado. Não que fizesse milagres, coisa que o povo adora, nada disso; ela não apreciava qualquer forma de ostentação. A aura de santidade emanava mesmo era de sua bondade natural, expressa no olhar, à flor da pele, nos gestos mais simples.
Caridosa ao extremo, fazer o bem sem olhar a quem era seu lema, propósito de vida, mesmo que tal ideia nunca lhe tivesse ocorrido de forma clara, consciente, com as palavras Sou caridosa, ou, Preciso ser caridosa. Beatriz nunca pensou sobre esta qualidade, era assim e pronto, nasceu assim, aquilo não lhe fora ensinado: a mãe tivera doze filhos, ela foi a sétima a vir ao mundo, de modo que recebeu pouquíssima atenção dos pais durante a infância e adolescência. O pai, sempre presente, carinhoso com a mulher e filhos, dava duro para sustentar a prole; a mãe cuidava daquele batalhão de crianças, da alimentação da família, da arrumação da casa, não tinha tempo para si mesma. Em meio a tantos irmãos, Beatriz cresceu na solidão.
Concluiu o ensino fundamental com grande esforço, pois a maior parte de seu tempo era gasta em casa, com os irmãos, ajudando a mãe. Mesmo assim, sem formação adequada, trabalhava à noite no asilo para idosos da cidade, a desempenhar papel de auxiliar de enfermagem com extrema dedicação, a troco de irrisório pagamento. Ela trabalhava pelo gosto de ajudar. Ao menos, era o que pensava.
Beatriz não era pessoa religiosa. Não frequentava as missas domingueiras como todo mundo, motivo de reprovação geral. No entanto, deixava todos intrigados com o hábito infalível de se confessar com Padre Benedito, todas as segundas-feiras ao final da tarde, na Igreja de São Francisco, de quem era devota. Devoção à sua maneira, bem entendido, sem qualquer laivo de fanatismo, do fundamentalismo religioso tão comum na região. Era mais uma admiração infinita pela vida de Francisco, em particular pelo amor dele aos animais, sentimento igualmente forte em Beatriz. Ela não podia ver um gatinho esfomeado miando escondido em qualquer terreno baldio que o levava para casa e lhe devolvia a vida.
Tão bondosa, tão caridosa, que tanto Beatriz necessitava de confessar? Mistério a ocupar a mente de gente desocupada. Perguntada sobre as razões daquele comportamento, Beatriz desconversava, Sou pecadora como qualquer um.
O próprio Padre Benedito percebia a estranheza daquilo que mais parecia mania, doença mesmo. Beatriz entrava no confessionário pontualmente às 5 horas da tarde, não fazia o sinal da cruz nem dava Glória a Deus, ia logo dizendo, Padre eu pequei, não fui à missa ontem. Está perdoada, repetia com certo enfado Pe. Benedito; sabedor da bondade da moça, praticamente uma santa, havia já abandonado a ideia de tentar convencê-la que um bom católico deve comparecer à missa aos domingos. Ele não via naquilo pecado que requeresse perdão. Mesmo assim repetia, Está perdoada, cansado daquela ladainha semanal.
Pequei também porque perdi a paciência com José, acrescentou Beatriz; Ele deu um pontapé em João, ambos meus irmãos menores, E onde está o pecado nisso?, Botei os dois de castigo, E isso é pecado?, É, eu podia ter conversado com eles, Está perdoada. Repetiam-se nesse teor as confissões de Beatriz, sem que Pe. Benedito pudesse ver qualquer indício de desvio moral nas atitudes da moça. Já que não pecava por atos, palavras ou omissões, certa feita o padre lhe perguntou se pecava por intenções, mas Beatriz nem chegou a compreender a extensão da pergunta, Intenção de quê, padre?, De namorar, por exemplo, Nem pensar, padre, tenho mais o que fazer!
Depois de ano naquela litania, Padre pequei, Está perdoada, foi Benedito quem perdeu a paciência e proferiu ríspido, Beatriz, não me apareça por aqui durante um mês, está bem! Com pecados ou sem pecados, suma por trinta dias, entendido? Beatriz arregalou os olhos, paralisada, duas lágrimas a lhe escorrerem pela face pálida, deixou a igreja em estado de torpor, seguiu direto para casa, se trancou no quarto e chorou por longo tempo. Acalmou-se quando Brasinha, seu cão predileto, veio lhe lamber o rosto, ao perceber o sofrimento da dona.
Ela tinha uma semana para pensar no que fazer. Cumpriu com alegria as tarefas de sempre, o sorriso de santa estampado no rosto. Na segunda-feira seguinte, no início da tarde, tomou o ônibus para a cidadezinha mais próxima, entrou na primeira igreja que encontrou, Padre, eu preciso confessar!
Transcorridos três meses, Padre Eustáquio, o novo confessor, já não aguentava mais ouvir os mesmos não-pecados. Padre pequei, Está perdoada, Padre pequei, Está perdoada, Beatriz, vamos parar com isso, por que razão você deseja me convencer que é uma pecadora contumaz, já lhe disse que não há necessidade de continuar me contando essas histórias, sabe Beatriz, acho que você precisa de um psiquiatra, talvez um psicanalista, embora eu mesmo nunca tenha sido adepto do tal Dr. Freud, homem desnaturado que não acreditava na pureza das criancinhas, mas confesso – agora sou eu quem confessa! –, não aguento mais ouvir você dizer que não foi à missa no último domingo. Pronto, falei! E Padre Eustáquio despachou Beatriz.
Dois dias após ouvir aquele sermão, Beatriz teve um sonho do qual despertou gelada, a cama encharcada de suor, tremendo de susto. Ela sabia que o sonho era longo, cheio de detalhes reveladores, dos quais se lembrava apenas de uma cena: vestida de noiva, entrava em uma igreja de braços dados com sua mãe, e no altar, o noivo – seu próprio pai –, esperava por ela.
Beatriz não era pessoa religiosa. Também nunca tinha ouvido falar em psicanálise. Mas burra ela não era. Anotou cuidadosamente a história de seu périplo pelos confessionários da vida, registrou o que podia lembrar do sonho em seu caderno escolar, guardou apenas para si aquele segredo.
Não voltou mais à igreja, cortou o cabelo, arranjou namorado, rapaz vistoso que trabalhava na padaria onde ela comprava o pão de cada dia, pediu aumento no asilo onde ajudava no cuidado dos velhinhos, perdeu aquele ar de santidade ao encurtar a barra dos vestidos. Tornou-se motivo de escárnio em toda a cidade.
Beatriz se casou com André, que acabou por comprar a padaria – fazia o melhor pão da cidade. O casal teve dois filhos, a família se mudou para a capital. Pedro, o filho mais velho, estudava Medicina quando certo dia deparou com um velho caderno escolar, escondido numa gaveta de pertences antigos de sua mãe. Devorou com avidez aqueles escritos de Beatriz, pensou até em publicá-los. Formou-se médico, depois psicanalista, muito conceituado na cidade grande. Jonas, o filho mais moço, se formou em Arquitetura.