Do livro Paulo e Beatriz
Beatriz fechou o livro que acabara de
ler, colocou-o meio que solenemente sobre a mesa, e, agora sim, solenemente,
disparou, Perda de tempo!
Mais
não disse, nem Paulo perguntou, permanecendo no ar um quê de conversa por
terminar, de assunto suspenso, sobre algo que nenhum dos dois gostaria de falar
naquele momento. Depois de muitos anos de convivência, e não havia dúvida de
que se amavam, aprenderam que, em determinadas circunstâncias, o melhor a fazer
era permanecer em silêncio, pensar sobre o assunto, na espera de uma boa
oportunidade para conversar sobre ele. Não se trata de estratégia pensada
estudada racional, mas algo que aprenderam da experiência e do convívio, sem
que precisassem estabelecer pacto, acordo, combinação, regras. Aprenderam
simplesmente.
O livro
que permaneceu sobre a mesa pertence ao gênero policial, categoria a qual nem Paulo
nem Beatriz consideram-se aficionados. Ambos gostam do autor, é verdade, que
num certo momento da vida deixou de escrever sobre assuntos considerados
importantes sérios relevantes, e passou a escrever romances policiais. Aquele
era seu décimo livro sobre o mesmo detetive com nome de filósofo, morador de um
certo bairro de cidade grande, cheio de manias rabugices excentricidades
telhices, que primava por incorruptível honestidade. Era dado a leituras o tal
detetive, mote para que o autor desse vazão a sua própria erudição, despida de
qualquer academicismo, pois colocada na boca de um simples policial. Agora o
autor escrevia para o leitor comum e sentia-se muito à vontade com isso. Talvez
escrevesse para si próprio.
Não
posso deixar de ler esse livro, pensou Paulo. Ele havia lido todos os
anteriores, com maior ou menor entusiasmo, mas sempre com genuíno interesse,
principalmente pela forma com que o autor tratava a história: escrita correta,
elegante, bem cuidada, sem pedantismos, própria de quem se esmera no fazer. Paulo
podia avaliar o esforço do autor, acostumado a escrever sobre Filosofia, agora
às voltas com o romance policial, gênero para o qual os pedantes torcem o nariz.
Chegava a sentir uma certa pena do autor, Ele parece sofrer com a escrita, imaginava
Paulo. Portanto, não podia deixar de ler o livro, mas nada disse à Beatriz
naquele momento em que ela solenemente proferiu o impiedoso definitivo
veredicto, Perda de tempo!
Bem verdade que Paulo, naqueles dias,
estava ocupado nada mais nada menos com a leitura da Odisseia. E
particularmente ocupado com uma fala de Zeus, “pai dos homens e dos deuses”:
“Vede
bem como os mortais acusam os deuses! De nós (dizem) provêm as desgraças,
quando são eles, pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam!”
Esse Homero era foda, exclamou Paulo,
dirigindo-se à Beatriz. Não sei quantos anos antes de Freud, sacou que os
homens servem-se dos deuses também para justificar as agruras desta vida, em
vez de assumir responsabilidade por seu próprio desvario e incompetência. Somos
nós que sofremos mais do que devemos ou precisamos!
Beatriz calou-se, pois agora era a vez
de Beatriz calar-se. Ouviu, escutou, reparou, pensou, mas nada respondeu.
Talvez ainda estivesse maldizendo, irritada, a perda de tempo que fora a
leitura do livro. Ou resolveu permanecer à espera da melhor oportunidade para
comentar as sábias palavras de Homero.
Passaram-se
alguns dias. Numa certa noite de setembro, ao chegar em casa cansada da
academia de ginástica, Beatriz reparou de pronto no livro nas mãos de Paulo, o
tal livro. E fulminou, Não tem nada melhor para ler?
Paulo não respondeu. Ele havia aberto
um Brunello de boa safra, deixando-o respirar por duas horas, aguardando o
espaguete com linguiça que ambos preparariam naquela esplêndida sexta-feira,
uma das especialidades de Beatriz. Ela cozinhava, ele fazia o trabalho sujo: picava
cebola, descascava alho, abria a lata de tomates pelados, esvaziava o lixo de
cozinha na lixeira, lavava a louça que ia sendo utilizada para que a cozinha
permanecesse limpa e arrumada, enfim, obedecia as ordens de Beatriz, Abra um
pacote de sal, Pegue dois tomates bem maduros, tire as sementes, pique em
cubinhos, Pegue duas pimentas frescas em nossa horta, faça isso faça aquilo, ao
que Paulo obedecia desvalido de prazer, pois não havia dúvida de que se amavam.
Fechou o livro, nada respondeu, agora era sua vez de nada responder, dirigiu-se
à cozinha. Provaram o Brunello, Maravilhoso!
Acordaram
tarde no sábado, e Beatriz ainda permaneceu lendo na cama por quase uma hora.
Quando se levantou, a mesa do café estava posta, com cada coisa em seu lugar,
diria Bandeira: frutas, pão de queijo que ela mesmo havia feito e congelado,
suco de laranja espremido na hora, queijo de Minas, presunto de Parma, Melhor
que café de hotel 5 estrelas, Paulo brincou. Mas antes mesmo de olhar para a
mesa, Beatriz observou que o marcador indicava que a leitura do livro passava
da metade, e não perdeu a oportunidade, Tem gente que gosta mesmo de jogar seu
tempo fora!
Paulo,
de muito bom humor, respondeu, É livro de férias, Bia! Viajamos daqui a três
dias, mas já me sinto em plenas férias, e então, nada melhor que um bom romance
policial. Lá vamos nós, a Ilíada pode esperar!
Beatriz
sentiu o golpe, foi obrigada a concordar, mas como não era mulher de dar o
braço a torcer, permaneceu em silêncio. Sentou-se, saboreou o café da manhã
cinco estrelas, leu o jornal que acabara de ser entregue, brincou com os
cachorros, regou as plantas da varanda, e, de chofre, perguntou, Paulo, o que
você me sugere para ler nas férias?
Agora
sim, Paulo pôde responder. Conversaram animadamente durante todo aquele fim de
semana sobre literatura, um de seus assuntos prediletos. E não apenas sobre os
tais livros de férias, também sobre o que significa perder tempo ou ganhar
tempo, sobre as palavras, e sobre o silêncio.