domingo, 1 de dezembro de 2019

Essa gente




Devoro em menos de 48 horas Essa gente, o novo livro do Chico Buarque de Hollanda (Companhia das Letras, 2019), alucinante, delicioso, atualíssimo, surpreendente, e quantos mais adjetivos houver para enaltecê-lo ainda seria pouco.
            Gosto de ler um autor pelo começo, meio e fim, quer dizer, ler o primeiro livro dele, o segundo, todos os que publicar, até o último (?), com a pretensão de achar que conheço o homem que escreve. Pura ilusão, mas gosto mesmo assim.
            Do Chico só não gostei do Benjamim e do O irmão alemão; dou destaque para Estorvo, uma preciosidade. Agora, Essa gente é mesmo uma delícia, literatura contemporânea do mais alto nível, escrita ágil, livre, liberta, delicada às vezes, bruta quando precisa ser bruta. Gosto de repetir o que aprendi faz tempo, ainda nos tempos do ginásio: o Demônio não tem lábios, tem beiço!
            Aqui vai uma pequena amostra:

“Também existe a categoria dos sonhos lúcidos, quando você sabe que o sonho é sonho, mas não consegue ver a saída. Ou vê, mas não quer sair, ou sai e já volta porque aqui fora é o absurdo, ou tem a pretensão de o conduzir a seu bel-prazer, como se você fosse um diretor de sonhos. Feito o desta madrugada em que, à cata de companhia, deito o olho numa mulata alta e airosa na Praça Paris. Quanta honra, diz ela, quando enlaço sua cintura e faço sinal para um taxi. ... Apesar de célebre, ainda não fiz fortuna, e a Yngrid parece ostentosa demais para o meu orçamento. Quando ao entrar em casa lhe pergunto pelo michê, pisca o olho e diz que vai depender da prestança. A palavra prestança ainda gira na minha  cabeça quando ela cruza as pernas no sofá. Pede champanhe, mas se contenta com um licor de maracujá, e pela fenda do macacão de seda exibe coxas saradas, sem celulites.”

            Poucas linhas adiante o leitor haverá de compreender a citação da ausência de celulites. São detalhes como este que aguçam o interesse e imaginação do leitor. É a prestança dos detalhes.
O tom de realismo da escrita é reafirmado pela recorrente história dos desvalidos meninos dos morros do Vidigal e Babilônia, castrados pelo pastor Jersey, nos fundos do templo da Igreja da Bem-Aventurança, a pedido do pedófilo maestro italiano, preocupadíssimo com as “primeiras audições no salão do Orfeão Nossa Senhora da Fátima”. Era tremendo o sucesso de Everaldo Canindé, o castrato, acompanhado por orquestra de câmara.
            A orelha do livro é assinada por ninguém menos que Sérgio Rodrigues, esse homem de sete instrumentos, a personalidade do momento. Ele termina o texto da segunda orelha com frase magistral, que resume o livro com perfeição: “Pensando bem, essa gente somos todos nós.”