A propósito
da crônica Um livro puxa outro,
publicada neste blog em 22/11, em que comento texto de Eliana Cardoso (que
celebra os 100 anos de A Metamorfose)
(http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2015/11/um-livro-puxa-outro.html#comment-form), tive o
prazer de receber comentário de assíduo leitor deste Louco, meu amigo Roberto,
que se apresenta com o nome de seu blog, extratodomiolo.com,
um blog que merece ser visitado!
Eliana havia acrescentado em sua crônica algumas
considerações de Vladimir Nabokov (1899-1977), que comparava a obra de Kafka ao
romance
O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e ao conto O capote,
de Nikolai Gógol.
Despretensiosamente, e é isso que justifica o título
desta crônica e da anterior, apresentei minha associação de ideias após a
leitura de O capote, excelente conto
de Gógol. Afirmei que me apareceu de súbito, e penso que o verbo aparecer cai
bem nesta circunstância, O Fantasma shakespeariano que abre o drama de Hamlet.
O mote é apenas esse: um livro puxa outro.
Eis que surge o comentário do Roberto, jovem cultíssimo,
brilhante, sobre meu texto, e que agora transcrevo:
“A distinta literata esqueceu de uma obra indubitavelmente
kafkiana que é "Bartleby, o Escrevente", escrita nos idos de 1853 por
Herman Melville. Na minha modesta opinião, esse conto supera tanto a obra de
Gogol quanto a de Stevenson. Vale lembrar que o falastrão Vladimir Nabokov,
crítico no qual a literata se apoia, considerava Dostoiévski um escritor
medíocre.”
Havia lido a novela (ou conto) de Melville há 10 anos, de
modo que fui induzido a relê-la, depois da provocação formulada pelo Roberto. E
sou obrigado, de muito bom grado, a concordar com ele! A peça é excelente!
Na edição que tenho em mãos, o título é Bartleby, o Escrivão - uma história de Wall Street (Cosac Naify, 2005,
tradução de Irene Hirsch), e não “Escrevente”,
como assinalou Roberto. Encontrei também a forma “Escriturário”. Deve tratar-se
de um simples problema de tradução, o que não tem importância. No original, The Scrivener.
A edição da Cosac é no mínimo curiosa. O livro vem
envolto em papel celofane, lacrado portanto, com a capa e contracapa
costuradas, isso mesmo, costuradas!, que o leitor deve descosturar com a ajuda
de uma tesourinha, o que é bem trabalhoso. Ao abrir o livro, percebe que as
folhas de texto estão unidas, e ele precisa separá-las com um cortador de papel
que acompanha o livro. Só assim ele chega ao enigma proposto por Melville.
Parece que a história de Herman Melville (1819-1891) surgiu pela primeira vez, anonimamente, na
revista americana Putnam's Magazine,
dividida em duas partes. A primeira parte foi publicada em novembro de 1853; a publicação
foi concluída no mesmo ano, em dezembro; e foi relançada no livro The Piazza
Tales, em 1856.
Relembro ao
leitor que Kafka nasceu em 1883, portanto 30 anos após Bartleby!
A
edição da Cosac a que me referi traz ótimo posfácio de Modesto Carone, nosso
especialista na tradução de Kafka para o português. Carone faz referência à
tradução de Melville efetuada por ninguém menos que Jorge Luis Borges, em 1944.
Borges aproximou Bartleby de Moby Dick, a obra mais conhecida de
Melville.
Já
D. H. Lawrence, segundo Carone, ao referir-se a Bartleby, afirma que o livro “parece prefigurar Kafka”.
Retornando a Borges,
Carone acrescenta:
“Voltando ao cotejo de Bartleby
com a ficção kafkiana, proposto por Borges, a conclusão é que a obra de Kafka
projeta sobre Bartleby uma curiosa
luz ulterior. Bartleby já define um
gênero que por volta de 1919 seria reinventado e aprofundado por Franz Kafka: o
das fantasias da conduta e do sentimento.”
O
conceito de Complexo de Édipo formulado por Sigmund Freud também projeta “curiosa luz ulterior” sobre o Édipo
Tirano, de Sófocles, escrito há 427 anos a.C.!
E
Modesto Carone interroga, de forma definitiva, e ele mesmo responde, com
formidável poder de síntese:
“Mas do que realmente trata a narrativa curta de Melville? Aparentemente, de quase nada.”
Esta
resposta é absolutamente kafkiana, porque ao mesmo tempo que trata de nada, Bartleby trata de tudo, da vida, do
sentimento dos homens.
Roberto
tem toda a razão: Eliana Cardoso esqueceu-se de Herman Melville! Para Roberto,
Kafka puxou Melville.
Em tempo: por desconhecer a fonte
em que se baseia o nosso Roberto, não posso acrescentar nada ao que disse sobre
Nabokov e Dostoiévski. Se é verdade, pobre Nabokov, pisou na bola.