quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Morre Lan, aos 95


Lan (1925-2020)


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Por quê tanto sofrimento?



Friedrich Nietzsche (1844-1900)

 


Por quê tanto sofrimento no mundo? Quem pergunta é toda a humanidade, independentemente de raça, cor, religião, posição política, ou qualquer outra diferença entre pessoas, países, continentes.

            Voltemos a Viviane Mosé, em seu livro Nietzsche hoje, já apresentado nesse blog:

 http://loucoporcachorros.blogspot.com/2020/10/nietzsche-hoje.html.

            Vamos ao capítulo Sobre o Sofrimento (p. 100-101):

 

“A dor advém, antes de tudo, do choque que caracteriza a vida como eterna expansão, eterna superação de si mesma. Em outras palavras, a dor é própria da vida, não tem como eliminá-la completamente, especialmente a dor psíquica, a dor de existir, de ter que fazer escolhas, lidar com as perdas, com o erro, com a morte...”

 

            E Viviane complementa:

 

“A dor é uma positividade, possui uma função no organismo; ela é um sinal, um alarme, portanto é preciso aprender a interpretá-la considerando o fluxo da vida, considerando as forças que estão em questão. A dor é sinal de recolhimento, retração, requer cuidados.”

 

            Nos anos 70, era professor em tempo integral e dedicação exclusiva no Hospital de Sobradinho, cidade satélite de Brasília, o então hospital de ensino da Universidade de Brasília, que vinha desenvolvendo interessante projeto de Medicina Integrada. (Um pobre coitado residente no sul do Piauí, com apendicite aguda, tinha acesso ao nosso hospital com mais facilidade do que encontrava atendimento em outra cidade, incluindo a capital de seu estado.) Tínhamos contato com as patologias as mais variadas, e com os respectivos sofrimentos que as acompanhavam.

            

Menina mirrada, perto de 5 anos de idade, chega ao hospital com enorme inchaço em um dos tornozelos, sem outros comemorativos – no jargão médico –, sem febre, sem dor no local da lesão. Ao exame físico, a manipulação do local afetado não ocasiona qualquer sinal de dor. A radiografia revela fratura grave da tíbia e de alguns ossos do tornozelo. Ela nega dor.

Renomado Professor de Pediatria, natural do Chile, atraído a Sobradinho pelo tal projeto de ensino, como tantos outros o fizeram e convidado ver a menina mirrada. Ele a ouve, examina, olha a radiografia, chama a enfermeira e solicita uma agulha hipodérmica, dessas de injeção. Pede gentilmente que a menina desvie o rosto para o outro lado, toma-lhe o fino bracinho, e em frente de todos nós, o transfixa com a agulha. A menina não se mexeu. Com certo tom teatral, anuncia o diagnóstico: 

– Agenesia Congênita da Dor, doença incompatível com a vida.

Complemento eu: uma simples apendicite aguda, uma pneumonia, levam à morte, pois na ausência de dor não se suspeita de que algo esteja errado, não se faz  diagnóstico precoce. (A menina continuava andando, o que agravava ainda mais as lesões, por não sentir dor.)

Inspirada em Nietzsche, Viviane aponta: [a dor] “possui uma função no organismo; ela é um sinal...”

 

Outro conceito que desejo enaltecer nos dois pequenos trechos apresentados por Viviane, sempre inspirada no filósofo alemão, é que “a dor é sinal de recolhimento”. Em se tratando da dor psíquica, penso que o recolhimento significa prudência e ao mesmo tempo terapia. (Talvez por isso tantos procurem o silêncio e a penumbra de uma igreja.)

Diante do sofrimento psíquico alguns gritam, esbravejam, amaldiçoam, praguejam, o que só faz aumentar o desequilíbrio mental. O recolhimento propicia o olhar para dentro, permite sentir a dor – aprendi com a psicanálise que esta dor pode doer muito, mas não mata.

Gosto muito da palavra recolhimento. Penso que escrever é uma forma de recolhimento. 

Segundo Nietzsche, a dor é própria da vida.