domingo, 19 de fevereiro de 2017

Dentro de mim ninguém entra


           
              Não resisto a um livro bonito, bem feito, de preferência com capa dura, sobrecapa, cabeceado, tipografia caprichada, papel de qualidade, enfim, edição bem cuidada. Até o gosto por canetas, gosto antigo, abandonei, mas o livro continua sendo o único objeto de desejo. Se o conteúdo é de valor, aí então nem se fala!
            É o caso de Dentro de mim ninguém entra, de José Castello e Bispo do Rosário, editora Berlendis & Vertecchia (São Paulo, 2016).
            Antes de tudo, preciso registrar uma novidade: quando se abre a capa, surge a lombada nua, áspera, crua, revelando os cadernos unidos pela costura e um pouco de cola. Arthur Bispo do Rosário ia gostar.


            O texto é de José Castelo, (isso mesmo, o jornalista famoso, e escritor de peso), misto de ficção e realidade: não é sempre assim? Castello entrevistou Bispo do Rosário em 1985, no Manicômio Juliano Moreira, acompanhado do renomado fotógrafo Walter Firmo. Parece que o encontro deixou-o perturbado, tal a confusão reinante. O ensaio foi publicado originalmente em Inventário das sombras (Record, 1999).
            As fotografias, belíssimas, são de Andrés Otero (2016).
Todas as obras reproduzidas no livro pertencem à coleção do Museu Do Rosário Arte Contemporânea, Prefeitura do Rio de Janeiro.
Seleciono dois pequenos trechos do livro, que me tocaram em particular:

“Talvez escrever seja a única maneira que me sobra para me livrar dessa cama. Se meu corpo continua preso, minha cabeça está solta. Ninguém a pega, ninguém a alcança. A cabeça é uma espécie de castelo em que a gente guarda nossas coisas mais íntimas. Essas coisas secretas que carregamos dentro da gente. Esses pensamentos que só a gente tem.
Estou pensando nessas coisas quando me vem à cabeça uma frase que, nas brigas com meus pais, sempre gostei de repetir: ‘Dentro de mim ninguém entra’.”

            O trecho acima fala da tal escrita terapêutica, tão badalada aqui nesse blog. O fragmento seguinte trata do mesmo tema, a necessidade da escrita, porém sob ótica um pouco diferente:

            “Os caras famosos que escrevem histórias só fazem isso porque esperam que as pessoas, depois de lerem, gostem mais deles. Eles escrevem também para ganhar dinheiro com seus livros. Não é para nada disso que eu escrevo. Não escrevo para ganhar dinheiro ou ser famoso. Eu também não escrevo essa história para deixar ninguém feliz, eu escrevo essa história para me sentir feliz.
            Talvez seja por isso que o doutor acha que estou doente. A minha doença não está em contar histórias, mas em não me importar com que os outros acham delas. Se isso me interessasse, eu mostraria minha história a alguém. Mas não sinto nenhuma vontade de mostrar. Não escrevo para aparecer – na verdade, acho que escrevo para desaparecer. Eu me escondo atrás de minhas histórias como se elas fossem cobertores.”

            O livro apresenta ao final uma minibiografia intitulada Arthur Bispo do Rosário: o mordomo do Apocalipse, ainda de autoria de Castello.

A 30a Bienal de Arte de São Paulo, em 2012, apresentou extensa coleção das peças de Bispo, que foram por mim fotografadas. Apresentei-as à época neste mesmo blog, e estão nos endereços abaixo. Vale a pena conferir.