sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Criação literária




Acaba de ser lançado pela editora Perspectiva o livro de Michel de M’Uzan, Da arte à morte: itinerário psicanalítico, com tradução de Fabio Landa (2019). São textos esparsos, amparados na clínica e sustentados pela base teórica freudiana, e acima de tudo muitíssimo bem escritos, literatura do mais alto nível. 
            Interessou-me de imediato o primeiro texto, datado de 1964: Visão geral do processo de criação literária. Assinala o autor, a mais de meio século, fato que podemos pensar como fenômeno contemporâneo, aguçado pela mídias sociais; diz ele: “Existe por toda parte, em quase todos os meios, pessoas que escrevem, que entram de uma maneira ou de outra no circuito de produção dita artística e que, além do mais, têm meios de publicar o que fazem.” (Isso não é mesmo atualíssimo?)
            M’Uzan relata que no curso de uma análise pode surgir “o desejo mais ou menos frívolo” de escrever; o desejo de escrever pode transformar-se no fracasso da vocação; e pode surgir até a atividade literária mais genuína e autêntica! Compartilha a opinião de Freud, expressa em carta a Mlle N.N., em 27 de junho de 1934, de que “se o impulso para criar é mais forte do que as resistências interiores, a análise só pode aumentar, jamais  diminuir as faculdades criadoras”.
            Até que o autor chega ao âmago da questão: “A representação, efetivamente, parece-me ser um elemento fundamental da criação artística ou, mais precisamente, da criatividade em geral.”  
            A atividade de representação, porém, sofre influência permanente de elementos internos e externos, brilhantemente expostas pelo autor:

“Considero, efetivamente, que enquanto o narcisismo primário reina sozinho, não há nada a colocar em cena, já que tudo se passa, então, aquém do conflito. Somente no momento em que as pulsões se liberam e procuram os objetos, enquanto o mundo exterior começa a ser reconhecido como tal, é que as tensões nascem, engendrando uma situação traumática que o sujeito deverá afrontar. Essa necessidade vital vai conduzi-lo a elaborar a experiência por meio do que lhe é mais imediatamente acessível: uma representação de sua situação que é uma tentativa de síntese, uma busca de unidade. Para conseguir isso, o sujeito recorre espontaneamente à sua lembrança nostálgica da união narcísica  perdida, e ele terá tanto mais sucesso quanto for capaz de reencontrar o sentimento primitivamente vivido. Na obra que, eventualmente, resulte de tal representação interior, não é necessariamente o traumatismo que aparece, mas, com frequência, pelo contrário, a união, a reconciliação, a comunhão com o mundo expressa diretamente numa forma.”

            Com a mais profunda e sincera humildade, cônscio de minha insignificância  literária – escrevo apenas para mim e pelo prazer de escrever – faço agora referência ao meu segundo livrinho, 47 cenas de um romance familiar (Ed. PerSe, 2011), dedicado ao irmão e às filhas. Nele, o leitor vai encontrar tão somente “união, a reconciliação, a comunhão com o mundo”, embora expressas de forma imperfeita.
            Epígrafe do livro traz citação de Freud:

“Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas.”

Na cena A canequinha, “Pedro chega, entrega o boletim para a mãe [havia tirado a nota 9,5], tenta justificar-se, Esqueci a canequinha, e apanha mesmo assim [promessa antiga feita pela mãe]. E dói muito mais na mãe.” (p.24).  
Ao escrever sobre o meu romance familiar, ao escrever sobre as sucessivas gerações das quais faço parte, permaneço na busca infindável do significado do chamado processo de criação literária.