Minha avó Cici
“Ao ouvir que “só os mais velhos” estão sujeitos ao novo coronavírus e que a força jovem e criativa da parte dos vivos que interessa à humanidade deve voltar aos trabalhos agora para que o país não derreta, penso logo em como se sentem esses tais “mais velhos” aos quais o suspiro de alívio da frase se refere. Dizer que a doença “só mata velhos” é como dizer “tudo bem, só morre quem está com o pé na cova” ou “quem vai se abalar com a morte de alguém que já viveu tanto?” Escreveu Júlio Maria, crítico e repórter de O Estado de São Paulo, com o sugestivo título Velhos, o peso do mundo (25 mar 2020).
Desde o início da pandemia ouço a mesma cantilena, só os velhos morrem, aqueles com mais de 60 anos, eles precisam ficar isolados. Quem tem mais de 70 então nem se fala. Se você tem mais de 80 já morreu e ainda não sabe disso!
A sensação que em mim despertam tais afirmações é bastante desconfortável, para dizer o mínimo. E como leio e vejo a mesma notícia todos os dias desse isolamento social, vou aos poucos me abatendo, me sentindo pária no mundo, condenado ao degredo, verdadeiro leproso isolado em uma caverna escura, longe do restante das gentes, dos mais jovens sadios imunes ao vírus.
Como bem escreveu Julio Maria, “Os velhos se tornaram o peso do mundo”. Perfeitamente dispensáveis, já que são inúteis mesmo, acrescento eu.
Mas como ficarão nossos netos e netas, sem cada um de seus avós?
Minha avó Cici, mãe de meu pai, talvez tenha sido a pessoa mais importante em toda minha infância. Discreta, silenciosa, amorosa ao extremo, tratava o menino como se ele fosse gente grande, respeitosamente. Que teria sido de minha infância sem minha querida avó Cici?
Pensando melhor, ninguém é dispensável nesse mundo de deus. Diria Manoel de Barros:
Até um velho jogado fora
serve para a poesia.
Até um velho jogado fora
serve para a poesia.
Julio Maria termina sua crônica pedindo respeito aos velhos: “Há um momento da vida em que morrer por um vírus não é o problema. O que dói é ser assassinado antes de tudo acabar.”