No Natal, os Anos de chumbo, de Chico Buarque; na entrada do ano novo, os Contos morais, de J. M. Coetzee. Chico publica seu primeiro livro do gênero conto; Coetzee é escritor de fama internacional, ganhador do Nobel de Literatura em 2003. De qualquer modo, vale a pena comparar estilos e escolhas de temas. (Minha opinião sobre Anos de chumbo está em
http://loucoporcachorros.blogspot.com/2021/12/anos-de-chumbo.html).
Vejamos o primeiro parágrafo do primeiro conto de Coetzee, O cachorro:
"A placa no portão diz Chien méchant e o cachorro é méchant mesmo. Cada vez que ele passa, ele se joga contra o portão, uivando de desejo de alcançá-la e despedaçá-la. É um cachorro grande, um cachorro sério, alguma espécie de pastor-alemão ou rottweiler (ela sabe pouco sobre raças de cachorros). Em seus olhos amarelos ela sente ódio do tipo mais puro brilhando para ela.”
Em meu ponto de vista, este texto poderia estar no livro do Chico Buarque; tem a mesma crueza, que se prolonga pelo restante da narrativa. Rubem Fonseca também poderia ter sido o autor. Talvez Dalton Trevisan ou Sergio Sant'Anna. Esta é a literatura contemporânea, moderna no sentido de atual, que eu aprecio e muita gente detesta. Gostei de encontrá-la no primeiro conto do Coetzee, datado de 2017.
O segundo texto, cujo título é Conto, de 2014, vai pelo mesmo caminho:
“Ela não sente culpa. Isso é que a surpreende. Nenhuma culpa.
Uma vez por semana, às vezes duas, ela vai ao apartamento do homem na cidade, se despe, faz amor com ele, se veste, sai do apartamento, dirige até a escola para pegar sua filha e a filha do vizinho.”
A partir daí seguem-se os contos Vaidade (2016), Quando uma mulher envelhece (2003-2007), A velha e os gatos (2008-2013), Mentiras (2011) e O matadouro de vidro (2016-2017). Em todos eles, está presente a relação entre mãe e dois filhos, e esta mãe é ninguém menos que Elizabeth Costello, o alter ego do escritor. Estilo e conteúdo são outros, bem mais parecidos com a literatura anterior do sul-africano.
Há vinte anos eu e minha mulher éramos leitores assíduos de Coetzee; adorávamos a fala corajosa e incisiva de Elizabeth Costello em defesa dos animais (A vida dos Animais (1999) e Elizabeth Costello (2003) são livros preciosos!). Depois vem Desonra, livro assustador, talvez o melhor de Coetzee; seguem-se À espera dos bárbaros, Diário de um ano ruim, O homem lento, e muitos outros.
Agora, é uma alegria reencontrar Costello, ainda vociferando a favor dos animais! A velha e os gatos é uma pequena obra-prima! Transcrevo o primeiro parágrafo para que meu eventualíssimo leitor note a diferença de estilo:
“Ele acha difícil aceitar que, para ter essa conversa comum, mesmo que necessária, com sua mãe tenha de vir até onde ela mora nessa aldeia atrasada do platô castelhano, onde se passa frio o tempo todo, onde o jantar que servem é um prato de feijão com espinafre, e onde, além disso, é preciso ser polido sobre os gatos semisselvagens dela que se espalham para todo lado cada vez que alguém entra na sala. Por que, na noite de sua vida, ela não pode se instalar em algum lugar civilizado?”
Gosto muito desses longos períodos, mas há que deteste.
Contos morais poderia ser criticado por uma possível falta de unidade entre os textos. Penso que não: a leitura é tão agradável, tão elegante, a alma do escritor desnudada por inteiro, os temas tão bem escolhidos, com destaque para o processo de envelhecimento do homem, que nada mais importa.
Em O matadouro de vidro, título que mais parece ter saído de um conto de Kafka, Costello admite que a senilidade está avançando: “Eu não sou mais eu mesma, John. Está acontecendo alguma coisa comigo, com minha mente”. Parece não haver dúvida que Coetzee fala de si próprio. (O tema tem a preferência deste blogueiro, nos textos contidos em Diário da demenciação, no Louco por cachorros.)
Um grande livro, sem dúvida!