A língua brasileira está
mais viva do que nunca, e na condição de todo e qualquer vivente, encontra-se em
franca transformação. Quem puder acompanhá-la...
A análise meticulosa de
determinadas palavras e expressões realizada por Sérgio Rodrigues em seu belo
livro Viva a língua brasileira!
demonstra-o de forma cabal. No entanto, ocorre-me (em conversa com meu irmão) que
a comparação de um gênero literário específico, ao longo do tempo, poderia nos
fornecer bom exemplo de como e em que intensidade se processa tal
transformação. Penso que a crônica se presta bem a este
propósito, pela sua acessibilidade, delimitação temática, limitação de espaço,
entre outras características mais controversas. Além da paixão deste blogueiro
pelo gênero, considerado por alguns como menor.
Observe o leitor que não
falo em evolução da crônica, palavra
que poderia trazer a ideia de aprimoramento da linguagem, de um período em
detrimento de outro. Nada disso. Tudo em seu tempo.
De início, tomemos trechos
da crônica de Machado de Assis, publicada originalmente no Correio Mercantil,
Rio de Janeiro, em janeiro de 1859, intitulada O jornal e o livro. A excelência de Machado também como cronista é
inquestionável, daí tomá-lo como ponto de partida.
“O espírito humano, como o heliotrópio, olha
sempre de face um sol que o atrai, e para o qual ele caminha sem cessar: – é a
perfectibilidade. A evidência deste princípio, ou antes deste fato, foi
claramente demonstrada num livro de ouro, que tornou-se o Evangelho de uma
religião. Serei eu, derradeiro dos levitas da nova arca, que me abalance a
falar sobre tão debatido e profundo assunto?
[...] Sou dos menos inteligentes adeptos da
nova crença, mas tenho consciência que dos de mais profunda convicção. Sou
filho deste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas
tendências, minhas aspirações, são as aspirações e as tendências da mocidade; e
a mocidade é o fogo, a confiança, o futuro, o progresso. A nós, guebros modernos
do fogo intelectual, na expressão de Lamartine, não importa este ou aquele
brado de descrença e desânimo: as sedições só se realizam contra os princípios,
nunca contra as variedades.
Não há contradizê-lo. Por qualquer face que
se olhe o espírito humano descobre-se a reflexão viva de um sol ignoto. Tem-se
reconhecido que há homens para quem a evidência das teorias é uma quimera;
felizmente temos a evidência dos fatos, diante da qual os São Tomés do século
têm de curvar a cabeça.
[...] Tudo se regenera: tudo toma uma nova
face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o
vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A
literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do
pensamento humano? Não; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum
democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão.”
Não
há como deixar de admirar a forma machadiana, pela elegância, precisão,
originalidade, escolha do vocabulário, para dizer o mínimo. Mas, e se ela fosse
publicada hoje, num jornal de domingo, sem a chancela do mago do Cosme Velho? Talvez
nem chegasse a ser publicada.
O
segundo exemplo de cronista, tomo-o também de autor consagrado, considerado por
muitos o maior cronista brasileiro de todos os tempos, Rubem Braga. Bilhete a um candidato foi escrita em
dezembro de 1960, publicada na Manchete.
“Olhe aqui, Rubem. Para ser
eleito vereador, eu preciso de três mil votos. Só lá no Jockey, entre
tratadores, jóqueis, empregados e sócios eu tenho, no mínimo mesmo, trezentos
votos certos; vamos botar mais cem na Hípica; bem, quatrocentos. Pessoal de meu
clube, o Botafogo, calculando com o máximo de pessimismo, seiscentos. Aí já
estão mil.
Entre colegas de turma e de
repartição contei, seguros, duzentos; vamos dizer, cem. Naquela fábrica da
Gávea, você sabe, eu estou com tudo na mão, porque tenho apoio por baixo e por
cima, inclusive dos comunas; pelo menos oitocentos votos certos, mas vamos
dizer, quatrocentos. Já são mil e quinhentos.
Em Vila Isabel minha sogra é
uma potência, porque essas coisas de igreja e caridade tudo lá é com ela. Quer
saber de uma coisa? Só na Vila eu já tenho a eleição garantida, mas vamos
botar: quinhentos. Aí já estão, contando miseravelmente, mas
mi-se-ra-vel-men-te, dois mil.”
[...] Passei uma semana sem ver
meu amigo candidato; no dia 30 de setembro, três dias antes das eleições,
esbarrei com ele na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, todo vibrante, cercado
de amigos; deu-me um abraço formidável e me apresentou ao pessoal: “este aqui é
meu, de cabresto!”
Atulhou-me de cédulas.
Meu caro candidato:
Você deve ter notado que na
122ª seção da quinta zona, onde votei, você não teve nenhum voto. Palavra de
honra que eu ia votar em você; levei uma cédula no bolso. Mas você estava tão
garantido que preferi ajudar outro amigo com meu votinho. Foi o diabo. Tenho a
impressão de que os outros eleitores pensaram a mesma coisa, e nessa marcha da
apuração, se você chegar a trezentos votos ainda pode se consolar, que muitos
outros terão muito menos do que isso. Aliás, quem também estava lá e votou logo
depois de mim foi o Gonçalves dos selos.
[...] Vou lhe dizer uma coisa
com toda franqueza: foi melhor assim. Melhor para você. Essa nossa Câmara
Municipal não era mesmo lugar para um sujeito decente como você. É
superdesmoralizada! Pense um pouco e me dará razão. Seu, de cabresto, o Rubem.”
Não é mesmo espetacular?! Um século separa os dois
textos, ambos escritos no mesmo idioma, mas quanta diferença! Em Braga, a
linguagem não poderia ser mais coloquial. Quem empregaria a palavra “superdesmoralizada”
tão à vontade?
Vamos ao terceiro exemplo, daquele que considero o melhor
cronista da atualidade (trata-se de gosto pessoal, é verdade), Luís Fernando Veríssimo.
O título é Usurpação, publicada
em O Globo em outubro de 2016.
“Cervantes levou quase dez anos
para escrever a segunda parte de “Dom Quixote”, e escreveu porque uma versão
apócrifa da continuação da história, feita por alguém que nunca se soube quem
era, foi um sucesso popular. Cervantes se viu forçado a, por assim dizer,
resgatar seu personagem do usurpador. Na falsa continuação, Quixote trai a sua
amada Dulcineia e acabava seus dias num asilo de loucos. Charles Dickens viu
seu personagem Pickwick transformado por um usurpador no seu oposto. O Pickwick
apócrifo visita a França, renuncia à bebida e se casa, coisas que o Pickwick do
Dickens jamais faria.
Estes dois exemplos sugerem uma
especulação: até que ponto personagens criados por um autor pertencem ao autor
ou, postos no mundo, caem em domínio público e pertencem a todo o mundo? Uma
criação literária traz implícita a condição de exclusividade dos seus
personagens ou, uma vez criados, os personagens passam a ter vida própria,
muitas vezes diferente da vida imaginada pelo autor? Quixote e Pickwick podem
ter outra vida fora da que foram condenados na página impressa?
Outra especulação é sobre a
relação variável do livro com o leitor. Como um texto é compreendido, ou
incompreendido, dependendo da época e de quem lê.
[...] Com a internet, surgiu um
novo tipo de relação entre texto e leitor, e um novo tipo de usurpação. Textos
apócrifos tornaram-se comuns, com assinaturas que, na maior parte das vezes,
são inconfiáveis. E não há o que fazer, a não ser relaxar e se resignar. Sempre
conto que fui abordado por uma senhora que declarou não gostar muito do que eu
escrevo, mas que tinha adorado um texto meu recente, que lera na internet. O
texto não era meu, mas agradeci com um sorriso. Elogio a gente não dispensa.”
Grande
Veríssimo, dono de um toque de humor incomparável! Pouco mais de meio século
separa Braga de Veríssimo. E já se pode notar a transformação do texto, sua
modernidade, um certo despojamento, na falta de adjetivo melhor, no último
autor. O arremate da crônica (“Elogio a gente não dispensa”) traz a marca
registrada do gaúcho.
A provocação que o título
do presente texto oferece – qual o melhor cronista? – só pode ser respondida mesmo
levando em consideração um determinado período de tempo, analisadas as
constantes transformações por que passa a nossa língua brasileira.
O fato é que temos grandes
cronistas! Se puder despertar no leitor o gosto pelo gênero, o Louco sente-se
satisfeito.