Somos
vizinhos de nossos avós por parte de pai: esta é uma graça que, desde já, tenho
plena consciência de receber, a despeito de meus 6 anos de idade. Basta
atravessar o portão que liga os dois quintais e pronto, estou em casa, quero
dizer, em casa deles, mas como se fosse minha verdadeira casa. Aqui, com os
avós, moram a paz, a tranquilidade, a alegria, o afeto. E o quintal é mais
bonito, mais florido.
O avô Breno é sisudo, portanto
pessoa de pouco riso, um intelectual à moda antiga, compenetradíssimo, responsável
ao extremo, enfim, um homem honrado. A avó Ceci, apelido carinhoso para quem se
chama Lucila, um doce de mulher. Eu mesmo, o neto predileto dela.
O avô é funcionário aposentado da
prefeitura, a avó, funcionária da Caixa Rural, uma espécie de banco do
interior; ambos vivem de parcos rendimentos e não conhecem o que é luxo, nunca
conheceram, a vida regrada, contada, calculada na ponta do lápis, sempre em
ordem e passada a limpo. Não pode haver desperdício de qualquer espécie, não há
sobras de comida. Um dos raros momentos de altercação entre a avó e Maria, a
cozinheira desde sempre, e que ajudou minha mãe com as tais fraldas que nunca
secavam quando eu nasci, ocorre quando Maria alimenta o gato Chaninho com iscas
de carne de primeira e que será servida no almoço, Um absurdo de desperdício,
resmunga Ceci. As más línguas chamam os velhos de sovinas.
Porém há um outro tipo de economia
que impressiona ainda mais o menino, a economia de palavras. Breno e Ceci são
ambos discretíssimos! Não se ouve em casa deles um vislumbre de maledicência,
um triz de diz-que-diz-que, a fofoca mais ingênua ou inocente; antes, o
discreto silêncio. Fora os assuntos proibidos, jamais mencionados, como por
exemplo qualquer coisa relacionada a sexo. Sobre religião, apenas o avô fala,
crente que é, espírita kardecista, estudioso da doutrina; a avó, que não crê,
permanece em respeitoso silêncio, nem-que-sim-nem-que-não. Uma filha deles,
minha tia, morreu ainda jovem, em circunstâncias misteriosas para o resto da
família, assunto jamais ventilado, insondável enigma, caso em que reina
silêncio mais profundo que o silêncio do próprio túmulo.
Mas não há opressão, tormento,
tortura, mortificação, martírio ou cilício. Há paz nesta casa, e aqui eu me
sinto em casa. Tanto que, nas manhãs quentes de domingo, Ceci gosta de tomar
uma cervejinha gelada. Eu, rente, na expectativa de um guaraná. Maria prepara
então o torresmo, o alho frito, um naco de linguiça, quando não é dia da
especialidade da casa: pastel! E que pastel! Nunca em tempo algum ou em
qualquer lugar se come pastel igual, frito em banha de porco, de carne, queijo,
frango ou palmito!
Pois neste domingo, perto das 11
horas da manhã ensolarada faz um calor úmido e grudento nos sopés da
Mantiqueira; Ceci abre a geladeira, retira a cerveja e o guaraná, abre primeiro
o guaraná, visto está, e depois abre a cerveja. Ao despejá-la no copo já se
nota algo errado, ela não espuma, não há gás, não há bolhas, parece turva,
definitivamente está turva, a avó resolve prová-la mesmo assim, desapontada,
sem acreditar no que está vendo: a cerveja está choca! Podre, estragada,
cheirando a mijo de égua, Um absurdo de desperdício, mas isso não fica assim,
Pedro, corre na Petisqueira, diz que a cerveja está estragada, pede pra trocar,
fico aqui esperando.
Pedro assim faz, e com certo
orgulho, menino virtuoso, merecedor da confiança da avó, numa empreitada de
muita responsabilidade, afinal trata-se da sagrada cerveja dos domingos, ainda
mais naquele calorão. A Petisqueira fica na Praça Central, casa de certa
reputação pela antiguidade, onde se pode encontrar toda sorte de frios,
enlatados, bebidas, comes-e-bebes enfim, a uns 15 minutos de caminhada a passos
curtos, que curtas são ainda as pernas de Pedro, mas ele há de chegar lá. E
chega: Moço, a cerveja está estragada, minha avó pediu pra trocar. Pedro
precisa ficar na ponta dos pés e esticar o braço para conseguir colocar a
garrafa no balcão. O balconista, mulato de 90 quilos de peso, quase 2 metros de
altura, olha para o menino com espanto, talvez sua inteligência, idade mental,
ou coisa que o valha seja comparável à do menino, o homem olha com ar de quem
não está acreditando no que está vendo, O que?, Moço, a cerveja está choca e
minha avó pediu pra trocar. O balconista olha para o menino, Pedro olha para o
balconista. A caixa de som da Petisqueira toca uma daquelas músicas de faroeste
utilizadas para indicar a iminência do duelo entre bandido e mocinho, para ver
quem saca mais rápido do revólver, quem é mais rápido no gatilho, quem vai
morrer, quem vai viver.
O balconista pega a garrafa, despeja
na boca o líquido turvo pelo gargalo, sem interrupção, em goles sucessivos,
esvazia a garrafa, bate com a garrafa no balcão, arrota com estridência,
relincho, grasnadela, e, definitivo, proclama, Está ótima!
Pedro também não acredita no que
está vendo e ouvindo: foi-se a prova do
crime, a garrafa está vazia, não há mais cerveja, boa ou estragada, não há mais
o que dizer, o que argumentar; num átimo Pedro percebe que ali termina aquele
episódio de sua vida, que a experiência fala por si, que há uma espécie de
frustração irremediável, e que, portanto, para o que não tem remédio, remediado
está. Dá meia volta sem dizer uma palavra, volta macambúzio para casa, para a casa
da avó.
O que vai dizer à avó, Pedro caminha
matutando? Como explicar o acontecido? Como justificar-se? No entanto, o menino
não se sente culpado, apenas impotente diante da situação, Não há o que eu
pudesse ter feito naquelas circunstâncias, uma verdadeira fatalidade ter me
deparado com aquele homem sem qualquer paladar, insípido, insosso, dessalgado,
tão falto de sabor, pena que Pedro ainda não conheça a palavra ageusia, que tão bem se aplica. Pedro
pensa com seus botões, Lá se foi a prova do crime, e secretamente torce para
que o balconista tenha uma bruta caganeira com a cerveja estragada.
Ao chegar, diante da avó, Pedro
relata tim-tim-por-tim-tim o acontecido, sem tirar uma vírgula e sem
acrescentar uma vírgula, calmo, confiante, amparado pela intimidade e pelo amor
que ambos sentem um pelo outro, ele e a avó; no entanto, sério, compenetrado,
responsável, enfim, um menino honrado – aprendera com o avô.
Ceci ouve atentamente seu neto,
deixa que o menino fale sem interrompê-lo, calma, atenciosa, encorajadora, um
doce de mulher – embora pertença à classe dos que não creem –, e diz apenas, tocando de leve o ombro de Pedro,
Vamos tomar seu guaraná.