Todo velho, quando chega perto dos 70, é
tomado por preocupação e medo, quando se aproxima a data de renovação da
carteira de motorista. Todo velho que passou a vida inteira dirigindo seu
próprio automóvel, bem entendido. Deixar de dirigir, para ele, será um atestado
de perda de autonomia, o que é um horror. Antes uma boa morte!
Juscelino
era um desses idosos. Dirigia desde os 15 anos de idade, naquela época sem
carteira, é claro, porém melhor que muito motorista profissional, gabava-se ele,
ao dar suas voltinhas pela cidade do interior no Aero Willys azul claro do pai,
para impressionar as meninas.
Seu
primeiro carro foi um Fusca ano 66, com a pintura muito queimada, que só ficava
bonito quando molhado! Depois veio um Fuscão azul poderoso, seguido de um
Passat cor-de-bosta, mais outro Passat branco, uma Belina a álcool difícil de
pegar pela manhã, uma peruinha Marajó muito ruim, um Monza, outro Monza, um
Kadett preto lindo mas destruído num acidente por sua mulher, um Vectra cinza,
outro ótimo Vectra preto 2.2, um Citroën C4VTR, o melhor carro que Juscelino já
teve, e agora ele possui outro Citroën DS4. Ele se lembra de todos eles com
muito carinho, as viagens que fez, um ou outro problema técnico, nada de grave,
nunca bateu, orgulhava-se, sabia dos detalhes particulares e das manhas de cada
um. Carro parece gente, diz ele! E com o tempo pega a cara do dono!
Quando
entramos no ano de 2015 Juscelino sabia que em novembro sua carteira de
motorista precisaria ser revalidada, e durante todos aqueles meses ele preocupou-se
com o exame médico. Estava com catarata e enxergando muito mal. Às vezes
acordava de madrugada com o recorrente pesadelo: estava num consultório e o
médico projetava na parede aquelas letrinhas miúdas e ele não via nada, ou via
tudo branco, uma névoa ia tomando conta do ambiente, aos poucos recobria o
sonho completamente, e Juscelino acordava suando de pavor.
Chegou
o mês de setembro, criou coragem e procurou a clinica especializada em
renovações de carteira de motorista. Se não passar, opero essa merda de
catarata e refaço o exame, pensou. Juscelino preencheu as formalidades,
apresentou fotocópia da carteira que vencia, aguardou a chegada do médico.
Ao
ser chamado, muito nervoso, entrou no consultório e levou um susto: o médico
era bem mais velho do que ele, era mesmo muito velho, era velhíssimo, parecia
ter uns 90 anos ou mais, aquilo era impressionante! Recuperado, após alguns
segundos de hesitação, veio-lhe à mente uma ideia brilhante, caída do céu, só
podia ser, um plano que lhe pareceu perfeito!
A
consulta teve início com as preguntas de praxe, Que doenças já teve?, Já foi
operado?, Tem pressão alta?, É diabético?, Já precisou de atendimento
psiquiátrico?, É HIV positivo?, É epilético?, Que medicações toma? (Juscelino observou
a forma em que esta última questão foi formulada: em vez de perguntar se o
paciente tomava algum remédio, o doutor foi logo perguntando Que remédios o
senhor toma? Velho toma mesmo muito remédio.)
Paciente,
Juscelino respondeu a todas as perguntas e enumerou os onze remédios que
ingeria diariamente. Até que chegou o momento crucial, o exame oftalmológico.
– Sente-se aqui e me diga
que letras são aquelas, disse o médico em tom desafiador:
ACGHIKMNP3X
Foi aí que Juscelino
colocou em prática o plano infalível. Das letras projetadas, ele conseguia
identificar apenas umas duas ou três. Mas respondeu ao médico numa velocidade
incrível, em voz bem alta, quase gritando:
GKAMNAFCTU3B
O
médico assustou-se, não conseguiu acompanhar a fala de Juscelino e compará-la
às letras projetadas. Repita, por favor. Mais uma vez Juscelino disparou uma
leitura louca, rapidíssima, aos berros:
CTUVHAWQFOP3R
O
médico aturdiu-se! Pediu que o paciente agora ocluísse o olho direito e lesse
as letras com o esquerdo, e a cena repetiu-se, a leitura feita numa velocidade
espantosa, as letras todas embaralhadas no ouvido do médico.
Por um átimo, passou pela
cabeça do doutor que ele é que estava surdo, ou já não via tão bem, talvez estivesse
na hora de se aposentar. Pareceu-lhe que o paciente lia magnificamente bem...
E
deu por encerrada a consulta:
–
O senhor está aprovado! Receberá sua nova carteira de habilitação em casa, em
poucos dias, disse o médico, num tom de voz entre a dúvida e o ódio.
Juscelino
ligou para a mulher e deu a boa notícia:
–
Passei!