"Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística". Assim Hélio Schwartsman inicia sua crônica Vivendo com a tragédia nesse domingo, no Estadão (18 abr 2021).
Segundo ele, a frase teria sido proferida por Stálin, sem que haja comprovação disso. De qualquer modo, o fenômeno existe e é chamado de habituação: “uma forma de aprendizado caracterizada pela diminuição da intensidade com que respondemos a um estímulo à medida que a exposição se repete ou se prolonga”.
Minha casa fica próxima a uma via de grande movimento, que liga o centro a uma certa periferia de Brasília, de alta densidade populacional e acentuada pobreza socioeconômica. Desde o início desta pandemia, e isso já vai para mais de ano, ouço a macabra sirene das ambulâncias que vão e vêm, buscando pacientes acometidos da Covid-19 e transportando-os para hospitais distribuídos pela cidade, incontáveis vezes ao dia.
Durante os primeiros meses o som das ambulâncias produzia em mim forte comoção – não exagero –, por duas razões bem claras. A primeira era a dor da tragédia em si, o sofrimento das gentes mais necessitadas expostas à infecção, principalmente no precário transporte coletivo da Capital do país, de que são todos dependentes. Como não aglomerar, se vão trabalhar em ônibus lotados?
O segundo motivo do abalo emocional era tão evidente e talvez até mais insuportável que o primeiro: a ameaça da morte, de minha própria morte. Aprendi a diferenciar o som das ambulâncias daquele dos carros da polícia; é incrível, mas a sirene da polícia oferecia um certo alívio.
É aí que entra a habituação de que fala Schwartsman: ela permite espécie de adaptação a dura realidade, questão de sobrevivência emocional, um certo tipo de aprendizado, porque a vida segue. Uma reação bastante humana.
Prossegue Schwartsman: “O lado menos brilhante da habituação é que ela normaliza aquilo que, no plano moral, não deveria ser normalizado. É o que está acontecendo agora no Brasil com a epidemia de Covid-19. Estamos há tanto tempo lendo sobre o aumento de mortes e vendo imagens dos congestionamentos de caixões que a carnificina por que estamos passando já não desencadeia em nós a reação adequada, que seria a de exigir dos governantes medidas efetivas e imediatas para minorar a crise.”
É por isso que o brilhante articulista afirma que “No plano valorativo, a habituação é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição.”
Enquanto isso, as sirenes continuam a soar.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/04/vivendo-com-a-tragedia.shtml