quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O professor


            Lábio é lábio, beiço é beiço: cada palavra em seu lugar!
A voz grossa e entusiasmada do Professor Afonso reboava na sala, para admiração dos alunos, respeitosos, meninos ainda cursando o ginásio, diante da autoridade inquestionável do melhor professor da Escola. Prosseguia o brilhante professor da língua mãe, a última flor do Lácio, gostava de repetir: Não se pode dizer que o Demônio tenha lábios, não fica bem, ele tem beiços! E que beiços! Já uma donzela, não ponham beiços nela, pois ela tem lábios... Tal qual Iracema, a virgem dos lábios de mel!
E o menino guardou o ensinamento como quem guarda joia rara: cada palavra em seu lugar. Ao longo da vida de menino, depois adolescente, foi compondo variações sobre o tema
: qualquer palavra tem seu lugar;
: todas as palavras são usáveis, basta colocá-las em seu devido lugar;
: não há palavras boas nem más, melhores ou piores, só precisam estar no lugar adequado;
: até mesmo o palavrão tem seu lugar;
: a força da palavra no lugar certo pode ressuscitar um morto;
: compete a cada um de nós escolher a palavra certa para o lugar certo, num determinado momento;
: não é preciso ter medo das palavras;
: a palavra é tudo.
            A pedagogia do exemplo é mesmo a melhor forma de ensinar, se não a única. O menino tornou-se professor. Desejava repartir a joia rara tão bem guardada com os meninos de agora: pensar é utilizar-se bem da linguagem. E sempre que podia, lá vinha ele com o ditado do velho Afonso: Lábio é lábio, beiço é beiço! Cada vez mais, apaixonava-se pelas palavras. Tornou-se leitor fervoroso dos clássicos, e também dos modernos e contemporâneos, dentre estes Guimarães Rosa e Manoel de Barros, ambos inventores, dizia o professor. De Rosa, encantava-se com as primeiras palavras do Grande Sertão:
“– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.”
Apreciador sensível de poesia, certa vez leu em Matéria de poesia, de Manoel de Barros:
“Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia.”
E pensou: Qualquer palavra serve para a poesia.
Por puro prazer, esmerava-se no preparo das aulas, tanto no conteúdo como na forma, e principalmente na forma, garimpeiro cuidadoso na escolha de cada palavra, para que as ideias fossem claramente expressas e os ouvintes pudessem guardá-las para sempre. De repente, em meio a uma fala séria e compenetrada, lá vinha ele com um palavrão, altissonante PUTA-QUE-O-PARIU a ecoar pela sala (pois não tolerava aluno sonolento que não estivesse aproveitando aquele momento), para espanto e indisfarçável gozo dos meninos, agora todos despertos: O professor também fala palavrão, comentavam, entre risinhos agitados. (Houve até caso de reclamação por parte de mãe assaz virtuosa: Este professor está desencaminhando meu filho! O diretor da Escola, que bem conhecia a competência do professor, arquivou a queixa, também ele adepto do Lábio é lábio...). Suas aulas, portanto, tornaram-se concorridíssimas, a sala sempre cheia, entusiasmados aplausos ao final. Tornou-se, é certo, um bom professor, às custas de estudo, empenho e alguma arte.
            Passaram-se os anos, aposentou-se o professor. Bem verdade que sentia falta da sala de aula e daqueles meninos que chegavam todos os anos com a mesma idade, enquanto ele ficava, a cada ano, um ano mais velho. Quando os colegas solicitaram que continuasse ministrando uma ou duas aulas por semestre, a título de colaboração com os professores, e para que os estudantes não ficassem completamente privados de seus ensinamentos, de pronto ele aceitou. Assim, por mais algum tempo, o professor dirigia-se à Escola eventualmente, para prestar sua colaboração, e nem é preciso dizer que de forma graciosa. Talvez, ele pensava, sentisse culpa por ter se aposentado, tão carentes e necessitados os meninos de agora.
            Alguma coisa, porém, vinha mudando nos últimos semestres, percebia o professor. E para pior. Suas aulas já não causavam o impacto de antes. Aplausos, nem pensar. O palavrão já não despertava curiosidade e excitação. O entusiasmo dos ouvintes diminuía a cada ano. Reinava inexplicável apatia entre os estudantes. Até que algo impensável ocorreu em sala de aula, impensável porque aquilo o professor nunca pudera tolerar, não com ele: que os alunos conversassem enquanto ele falava. Ele tomava o fato como algo pessoal: A aula não está a contento, o conteúdo deve estar equivocado, falho na forma, a aula está chata, maçante, vazia, letra morta, incoerente, confusa, insignificante, fútil, chocha, banal, vulgar, enfim, uma frioleira. E, definitivamente, a culpa é minha, pensava o atormentado professor.
            Mesmo assim, resolveu apurar. Na última aula, o tema era seríssimo, denso, pesado, chegava a sentir pena dos meninos, tentava amenizar, tornar a coisa mais suave, mesmo assim o assunto era duro: sobre a morte e o morrer. Pois não é que duas meninas, bem a sua frente, conversavam e riam sem parar! O professou chamou-lhes a atenção e nada, continuaram conversando e rindo. Dirigiu-se a elas então de forma pessoal: Qual é o nome de vocês?, o que vocês têm a dizer sobre o assunto, repartam conosco o que estão pensando. Nada. Nada disseram as meninas, apenas continuaram conversando e rindo, rindo e conversando, para desespero do professor.
Terminada a aula a duras penas, o professor convidou as duas para uma conversa particular. Elas relutaram, mas foram praticamente obrigadas a aceitar. E o professor perguntou, direto, sem rodeios, puto da vida, confuso, irritado: Qual é o problema? Estupefato, ouviu: Que problema, professor? Porra (ele levava mesmo a sério essa história de Lábio é lábio...), vocês conversaram e riram durante toda a aula! Desculpe professor, se faltamos com o respeito. Não quero desculpas, quero entender o que está acontecendo. Professor, mas é assim mesmo, em todas as aulas. É assim, em todas as aulas? É, professor, o senhor desculpe. Já disse que não me interessam as suas desculpas! Então o que o senhor quer, professor, que fiquemos caladas durante uma hora? Não, quero que vocês repartam com a classe aquilo que estão pensando, sobre o tema que estamos discutindo. Mas não queremos repartir, professor, não estamos acostumadas a dizer o que pensamos para os nossos colegas, afirmaram as meninas, agora em tom peremptório, denotando já alguma impaciência e agressividade.
            O professor deu-se por vencido. Voltou para casa triste e ensimesmado, considerando a possibilidade de encerrar definitivamente a carreira docente. Lembrou-se então do velho Machado, eterno companheiro das horas de melancolia, outro mestre na arte de colocar cada palavra em seu lugar. Escreveu, o Bruxo, que um certo homem – que bem poderia ser um nostálgico professor aposentado –, numa certa noite de Natal, desejou exprimir com palavras, mais precisamente em versos, as sensações de um tempo passado, e só lhe saiu o pequeno verso:
Mudaria o Natal ou mudei eu?