Saudade do tempo em que nossas falas ou dizeres não
eram divididos em politicamente corretos ou incorretos. A gente dizia o que
pensava e pronto, estava dito. Monteiro Lobato era mestre nisso e por isso
agradava tanto às crianças, espontâneas por natureza.
Agora, ao reler Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter, na nova e primorosa edição comemorativa da Nova
Fronteira (2015), volto a me surpreender logo na primeira página do romance,
por sua franqueza, espontaneidade, naturalidade, texto que certamente seria
duramente criticado nos dias de hoje pelas patrulhas de plantão. Por isso,
reproduzo aqui o início do livro.
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era
preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi
tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu
uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro
passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
– Ai! que preguiça!...
e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de
paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que
tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento dele era
decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra
ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos
juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam
gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que habitando a água-doce por lá. No
mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma
punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém
respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a porcê o torê o
bacororô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.
Quando era pra dormir
trepava no macuru pequenino sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o
herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia
sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.”
Tudo
é muito novo – e permanece novo – na linguagem de Mário de Andrade, incluindo a
gramática. O homem não tinha medo de ousar. Guspia na cara..., politicamente
incorretíssimo, ao descrever o “nosso herói”.
Essa
edição comemorativa da Nova Fronteira traz um interessante Caderno de Fotos,
além de depoimento de Rachel de Queiroz sobre a obra.
Aos
que já leram Macunaíma, esta nova edição é um convite à releitura. Aos mais
jovens, que nunca o leram, um convite.