Ao tratar de Educação, tenho me referido com
insistência neste blog sobre o fenômeno que tem feito dos adultos de hoje seres existencialmente
impotentes. Porque os pais, na ânsia de tudo protegerem e controlarem,
alimentaram nos filhos uma mentalidade de vítimas: seres frágeis e amedrontados
que simplesmente não sabem como funcionar no mundo que existe fora do aquário. É o que podemos chamar de geração mimada.
Universidades privadas adotam cada vez
mais práticas que antes eram características do ensino colegial, como reuniões
entre pais e professores depois das primeiras provas, o acompanhamento das
notas e da assiduidade pelas famílias no portal da instituição, reclamações dos
pais diante de eventual reprovação do filho em alguma disciplina. Parece haver
uma jogada de marketing: elas superprotegem os alunos para ganhar a
confiança dos pais, aumentando assim o número das matrículas, promovendo a
infantilização destes jovens, os chamados “mimados”.
O problema tem início bem mais cedo, este
“processo de mimar” começa na primeira infância, quando se inicia a deseducação
e os pais decidem atender a todo e qualquer desejo dos filhos. Eles se esquecem
ou ignoram que a frustração é um eficiente desencadeador de aprendizado do
processo de pensar.
E por que o fazem? Pelas mais variadas razões: fazem-no
por excesso de amor (amor demais estraga); fazem-no por sentimento de culpa;
fazem-no por falta de amor, por incapacidade de amar, supondo que suprir bens
materiais – pencas de brinquedos – será capaz de compensar a falta de afeto.
Porém, a tirania das crianças leva à arrogância
dos jovens, causada pela infantilização e o não desenvolvimento da autonomia no
momento adequado.
Joseph Epstein relata que
“Nos Estados Unidos, vivemos hoje uma infantocracia, estamos sob o poder das
crianças. ... As crianças passaram de figurantes a protagonistas da vida
doméstica, e cada vez mais atenção tem sido dedicada a elas, à sua criação, às
suas pequenas conquistas, à melhora da relação que podem ter com pais e avós.
Nos últimos 30 anos, pelo menos, temos despendido vastas quantias e angústias
com nossas crianças, de um modo sem precedentes na vida americana e talvez na
de qualquer outra parte do mundo. Tamanho é o peso de toda essa preocupação com
as crianças que isso vem exercendo uma tirania muito peculiar, sutil, mas
generalizada. É isso que chamo de infantocracia, uma opressiva, maçante e
tristemente desorientada infantocracia.”
E as
consequências dessa obsessiva preocupação com a educação infantil já se faz
notar no comportamento dos adolescentes e adultos jovens de hoje. Após 40 anos
de trabalho como professor universitário, pude observar a nítida mudança de
comportamento dos estudantes em sala de aula. O que Epstein chama de ausência
de timidez, não reluto em chamar de franca e desafiadora agressividade,
acompanhada de arrogância pretenciosa – o leitor perdoe-me o pleonasmo. As
encantadoras crianças transformam-se em adultos excessivamente narcisistas, que
tudo sabem – ou pensam que sabem –, diante de professores assustados, acuados,
sem saber como lidar com um grupo estranho, relação que se torna ainda mais
difícil exatamente por se tratar de grupo.
Tais ideias estão expressas em textos
já publicados nesse blog:
Agora volto ao assunto
amparado por autoridade incontestável, o grande José Ortega Y Gasset
(1883-1955), com a publicação da 5a edição de A rebelião das massas, tradução de Felipe Denardi (Vide Editorial,
2016). O capítulo dedicado ao tema em questão intitula-se, sob medida, A
época do “filhinho de papai”.
(Antes de mais
nada, uma palavra acerca da curiosa expressão: o original, señorito satisfecho, foi traduzido com propriedade para o português
por filhinho de papai.)
O livro, publicado
pela primeira vez em 1930, representa, segundo Julián Marías (que faz a
Introdução da presente edição), o que “O
Contrato Social de Rousseau foi para o século XVIII, O Capital de Marx para o XIX”; La
rebelión de las masas é o equivalente do século XX.
Assim tem início o
texto de Ortega:
“Resumo:
o novo fato social que se analisa aqui é este: a história europeia parece, pela
primeira vez, entregue à decisão do homem vulgar enquanto tal. Ou dito na voz
ativa: o homem vulgar, antes dirigido, resolveu governar o mundo.
... Se
olharmos para os efeitos da vida pública a fim de estudar a estrutura
psicológica desse novo tipo de homem-massa, encontraremos o seguinte: 10,
uma impressão nata e radical de que a vida é fácil, sobressalente, sem limitações
trágicas; portanto, cada indivíduo médio encontra em si uma sensação de domínio
e triunfo que, 20, lhe convida a se afirmar tal como é, dar por bom
e completo seu depósito moral e intelectual. Esse contentamento consigo próprio
o leva a se fechar para toda instância exterior, a não escutar, a não pôr em
questão suas opiniões e a não contar com os demais. Sua sensação íntima de
domínio lhe incita constantemente a exercer predomínio. Agirá, pois, como se só
ele e seus congêneres existissem no mundo.”
Caro leitor, pode
haver algo mais atual em nossa sociedade contemporânea? E Gasset continua:
“Este
personagem, que agora anda por toda parte e impõe sua barbárie íntima onde
quer, é, com efeito, o menino mimado da história humana. O menino mimado é o
herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a
civilização – as comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da
civilização. ... É uma das tantas deformações que o luxo produz na matéria
humana.”
Gasset afirma que
são exatamente as dificuldades que a vida nos apresenta que são capazes de
despertar em nós nossas próprias capacidades: “Toda vida é luta, é o esforço
por ser ela mesma.” E que constitui ingenuidade pensar que a abundância de
meios favorece a vida:
“Um
mundo sobressalente [com sobra, excessivamente rico, supérfluo] de
possibilidades produz automaticamente graves deformações e tipos viciados de
existência humana – que podem ser reunidos na classe geral “homem herdeiro”, da
qual o “aristocrata” é só um caso particular, e o menino mimado outro; e mais
outro, muito mais amplo e radical, é o homem-massa do nosso tempo..”
Ainda falando das
características do que o autor chama de “filhinho de papai”, elas se mostram
perfeitamente compatíveis com o que foi exposto no início desta crônica: “é um
homem que veio à vida para fazer o que lhe dê na telha”. E Gasset completa:
“De
fato, o “filho de família” fabrica essa ilusão para si. E sabemos por quê: no
âmbito familiar, tudo, até os maiores delitos, podem acabar impunes. ... O
“filhinho de papai” é aquele que acredita poder se comportar, fora de casa, da
mesma forma que em casa. Que acredita que nada é fatal, irremediável e
irrevogável. Por isso pensa que pode fazer o que lhe der na telha.”
Por isso afirmei
acima que o “processo de
mimar”, por razões várias, começa bem
cedo, na primeira infância, quando os pais decidem atender a todo e qualquer
desejo dos filhos. Na vida adulta, as consequências em sociedade são bem
definidas por Gasset:
“O homem-massa não firma o pé sobre a implacável firmeza de sua sina;
antes, vegeta ficticiamente suspenso no espaço. ...É a época das “correntes” e
do “deixar-se levar”. Quase ninguém oferece resistência aos redemoinhos
superficiais que se formam na arte ou nas ideias, ou na política, ou nos
costumes sociais. E por isso, a retórica triunfa mais que nunca.”
(Ao
pensar a Literatura, por exemplo, constatamos que a Crítica literária
desapareceu, substituída pela resenha.)
Interessante
notar que Ortega Y Gasset inicia seu texto com a palavra “resumo”, seguida de
dois pontos, e está tão somente apresentando o problema ao leitor. Porém, penso
que deseja mesmo é resumir tudo, colocar toda a responsabilidade naquele que chamou
de “homem vulgar”. Por isso conclui de forma brilhante e coerente:
“Não poderia se comportar de outra maneira esse tipo de homem
nascido em um mundo organizado bem demais, do qual só percebe as vantagens e
não os perigos. O ambiente o mima, porque é “civilização” – isto é, uma casa –,
e não há nada que faça o “filho de família” mudar seu temperamento caprichoso,
que o incite a escutar instâncias externas superiores a ele, e muito menos que
o obrigue a ter contato com o fundo inexorável de seu próprio destino.”
Esta
é apenas uma pequena amostra do que trata A
Rebelião das Massas. O filósofo espanhol tem muito mais a nos dizer nesse
livro, indispensável mesmo.