Acabara de cortar o pulso quando observou:
– Não imaginava que sangrasse tanto.
Em parceria com Marçal Aquino
In Famílias terrivelmente felizes
Cosac Naif, 2003
Acabara de cortar o pulso quando observou:
– Não imaginava que sangrasse tanto.
Em parceria com Marçal Aquino
In Famílias terrivelmente felizes
Cosac Naif, 2003
1. Prisão
– Essa merda não acaba nunca?
– Acaba.
– E se não acabar?
– Um dia acaba.
– Mas se não acabar...
– Imagine a cena, comum em filmes americanos: o sujeito é condenado a 20 anos de prisão, chega na cadeia e lhe tiram logo todos os pertences, roupas, documentos, relógio, aliança, celular, a fotografia da namorada, recebe as roupas de cor cinza-chumbo da instituição, às vezes com listras brancas, bem dobradas, acompanhadas de cobertor, e ele entra com aquela trouxa nos braços pelos corredores gelados escuros tenebrosos, atravessando portas de aço trancadas que se abrem sob comando central, barulhentas, observado pela turba curiosa de presidiários – colegas –, apupado por alguns, ouve os gritos de provocação atordoado, mariquinha bicha viado, chega na cela a ele destinada, cubículo com cama de concreto e colchonete, pia, vaso sanitário, pequena janela gradeada no alto por onde entra pouca luz, e então pensa, E agora? Isso é o fim do mundo? Pior, não é o fim do mundo, se dá conta, Mas um dia há de acabar, se eu me comportar bem e não for assassinado por algum facínora que não foi com minha cara.
– Ô cara, mas você sabe mesmo animar a gente!
2. Gente
– Vontade de ir a um supermercado.
– É perigoso.
– Muita gente.
– Vou de máscara.
– Perigoso mesmo assim, contaminação na certa.
– Preciso ver gente, esbarrar em gente, sentir cheiro de gente e a dor lancinante de um carrinho de supermercado chocando com meu tendão de Aquiles, só assim vou sentir que ainda estou vivo, porque quando acordo de madrugada, no silêncio escuro da noite, hora em que os cães não ladram nem os carros correm pelas pistas da cidade, me assalta a dúvida se permaneço vivo, o que piora quando ouço a sirene de uma ambulância cortando o ar parado e me assombra a ideia de que estou dentro dela sendo encaminhado ao hospital mais próximo, e é quando mais me falta o ar, sinto enorme dificuldade para respirar, estou exausto porque gasto o resto de minha energia para respirar, energia que pode se exaurir a qualquer instante, ainda bem que a caridosa enfermeira ajusta em meu rosto a máscara de oxigênio, mas de que adianta oxigênio se 80 por cento de meus pulmões estão comprometidos com o tal processo inflamatório, aprendi isso no noticiário da tevê que repete a expressão processo inflamatório durante 24 horas por dia, todos os dias, e de repente me sinto sonolento, confuso, é a energia que se esvai, penso, muito sono, muito sono... e então acordo assustado, o pijama ensopado de suor, que sonho, meu deus!
– Isso é pesadelo, cara!
– Vontade de ir a um bom restaurante.
– E tirar a máscara?
– Impossível comer com máscara.
– Perigoso, fique em casa.
– E o desejo?
– Dá e passa.
– Eu ia demorar com o cardápio na mão, ler reler treler o menu, chamar o maitre e pedir informações sobre esse ou aquele prato, como é preparado, se a carne está macia, se o molho pode vir a parte, O peixe e as ostras estão frescos?, demorar-me na escolha das entradas, porque haveria de ser pelo menos duas entradas a tender o jantar ao máximo, então faria a escolha do prato principal, magret de canard ao molho de laranja – é o que sempre pedia ao desembarcar em Paris –, e em seguida a Carta de Vinhos, nenhuma preocupação com os preços exorbitantes após tantos anos de abstinência, peço logo um Brunello, um Biondi Santi de boa safra, para espanto do sommelier, enquanto minha mulher faz o pedido dela – bisteca florentina, para acompanhar o vinho –, a conversa são amenidades em voz baixa para não estragar a refeição, até que chega o interessante momento de a-provar o vinho, Você prova, Não, você prova, Está perfeito, vamos deixá-lo respirar, peço que a garrafa permaneça na mesa, leio o rótulo com prazer, confiro a safra, o teor alcoólico, guardo a rolha de lembrança, Coisa mais cafona, me repreende minha mulher, não ligo, e chegamos às entradas, uma dúzia de ostras acompanhadas de uma taça de champanhe, depois sardinha escabeche e um cálice de Porto branco seco – enquanto o Brunello respira –, então o clímax, chegam o pato e a bisteca, estão perfeitos, mal passados como convém, e o vinho está maravilhoso, a conversa agora se resume aos elogios à comida e bebida, que não se pode falar de boca cheia, Hum!, Hum!, Hum!, tudo ótimo, até que o maitre pergunta se queremos sobremesa, Um pain perdu com peras para compartilhar e dois cálices de Sauterne, por fim dois expressos bem quentes.
– Ô cara, vocês bebem, heim!