segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O sumiço de Amaro

 

Aqueles que estudam e falam o Esperanto, quase todos podem ser denominados idealistas. Tudo por um ideal! Amaro é uma dessas pessoas e foi isso que determinou seu destino.

         (Antes de prosseguirmos, cabe aqui um a ressalva: os esperantistas geralmente não gostam desse rótulo, ou pecha para os mais radicais; afirmam, convictos, que o Esperanto não é um ideal e sim uma realidade que avança cada vez mais, com adeptos em todo o mundo, até na China. Pessoalmente, compartilho dessa opinião.)

         Amaro é leitor voraz, em português e Esperanto. Já verteu inúmeros autores brasileiros para o Esperanto, Machado, Drummond, Rubem Braga, Luiz Ruffato, imbuído do espírito de divulgar a língua de Ludwik Zamenhof mundo afora. (Embora o Houaiss registre a palavra esperanto com minúscula, os aficionados a escrevem com maiúscula. Sigo esta regra.) 

Pois o fado de Amaro tem início quando ele acaba a leitura do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, transtornado, o coração saindo pela boca, o deslumbramento tomando conta dele, nunca lera coisa igual, que maravilha de livro, o melhor livro do mundo!  

         – Preciso traduzir esse livro para o Esperanto!

         O verbo diz tudo: precisar é uma obrigação frequentemente de fundo moral, uma missão, algo imperioso mesmo. Quando Amaro diz que “precisa traduzir”, o idealismo vem à tona, inunda a alma, os futuros obstáculos se tornam pequenos diante de tamanha determinação.

         A primeira providência antes de encarar o Himalaia foi comunicar aos parentes e amigos que ele estaria fora do ar nos próximos dez anos, espaço de tempo que julgava suficiente para a hercúlea tarefa.

         – Não me telefonem, não enviem e-mails, nada de WhatsZapp, não me distraiam nem me interrompam, esqueçam que eu existo, por dez anos; depois, voltamos a nos falar.

         Não tão imprevidente quanto o leitor possa supor, Amaro designou o melhor amigo como única pessoa com quem manteria contato em absoluto sigilo. Isso somente em casos urgentíssimos, imprevistos incontornáveis, a morte de um parente próximo – porque “viver é muito perigoso”, ele aprendera com Rosa. Ernesto poderia falar com ele usando o número secreto de telefone. Ernesto sentiu-se honrado, prometeu cumprir as exigências do amigo, embora não estivesse completamente convencido que aquilo iria dar certo; Amaro desiste logo dessa loucura, pensava ele. 

         E Amaro sumiu no mundo, o Grande Sertão debaixo do braço.

Os amigos comuns, todos esperantistas, também não botaram fé na empreitada, A qualquer momento Amaro desiste dessa bobagem e aparece, Essa tradução é impossível, Amaro não vai dar conta; não que torcessem contra, ao contrário, no fundo bem que gostariam de ver o livro vertido para o Esperanto, idealistas que eram, para a glória Zamenhof!

Passados seis meses Amaro permanecia incógnito. Ernesto, preocupado, aflito mesmo, enviou lacônico e-mail:

– Olá, Amaro. Como vai o trabalho? Abraço.

Amaro respondeu algumas semanas depois, mais sintético ainda:

– Mal. Empacado no título. Como traduzir Sertão?

Ernesto achou graça na resposta mas não houve réplica. Passaram-se outros seis meses, como não houvesse notícia do amigo, Ernesto voltou a insistir:

– E aí, Amaro! Tudo bem? Sua tia Ermenegilda faleceu, sinto muito. E o trabalho, como vai?

 – Mal. Empacado em Nonada. Deixei Sertão para mais tarde.

Foi aí que Ernesto começou se preocupar seriamente com a saúde mental do amigo. Puta que o pariu, se depois de um ano ele ainda está na primeira palavra do romance, ele vai pirar; e a palavra sertão ainda ficou para mais tarde! Preocupado estava, preocupado permaneceu, em respeito às determinações do amigo. Qualquer hora ele aparece, pensou.

Dois anos após o sumiço de Amaro a correspondência entre ele e Ernesto cessou. Não havia resposta para os insistentes e-mails do amigo. Ernesto pensou em procurar a polícia. Talvez fossem as dificuldades próprias da tradução, quem sabe o trabalho agora tivesse deslanchado, não era caso para pânico. Afinal, Amaro pediu dez anos para cumprir a tarefa. Paciência.

Depois de sete anos de silêncio, a angústia de Ernesto tornou-se insuportável, a tal ponto que resolveu comunicar aos amigos mais próximos o ocorrido. Desejava repartir a responsabilidade, diante da ausência de Amaro. O alvoroço foi geral! Iniciaram-se buscas pelos hospitais psiquiátricos, pelos asilos de pessoas em situação de rua (nunca pensei que um dia conseguiria utilizar-me dessa expressão!), nas principais capitais do país, no interior, na cidade de Amaro, porém sem saber exatamente o paradeiro do esperantista. Nada, nada de Amaro, nem sombra de Amaro.

O tempo passou, não se falou mais em Amaro e em sua tresloucada tarefa, só Ernesto não se esqueceu do amigo. Ao contrário, sonhava com ele, encontrava-o em Londres, Paris, na Indonésia, bem disposto, a tradução chegando ao fim após quinze anos de ausência, para glória de Zamenhof e seguidores; tudo sonho. Ernesto lia diariamente na Internet os principais jornais, incluindo os de língua inglesa e francesa, em busca de alguma notícia. Esmiuçava obituários. Aquilo acabou por tornar-se uma obsessão. 

Até que leu na Edição Brasil do El País a notícia que perambulava pelas ruas tortas e ladeiras íngremes de Ouro Preto um homem em frangalhos, maltrapilho, magérrimo, cabelo e barba há muito por fazer, falando um língua estranha. Levado a um posto de saúde, foi atendido por um médico esperantista, que identificou de pronto a língua misteriosa: Esperanto! Ernesto não conversou, tomou o primeiro avião para Belo Horizonte, e de lá um táxi para Ouro Preto. Encontraria finalmente o amigo.

Vinte e quatro horas após ter lido a notícia no jornal Ernesto estava em Ouro Preto. Não conhecia a cidade, ficou extasiado. Conteve-se, tratou de se informar, acabou encontrando o homem que falava a tal língua misteriosa. De fato, ele falava Esperanto, mas não se chamava Amaro e nunca havia lido o Grande Sertão. Sabia apenas que viver é muito perigoso.