Os escritos de Ana Cristina Cesar – poesia e prosa –
acabam de ser reeditados pela Companhia da Letras, sob o título de “poética”. A edição é bem cuidada
(merecia capa dura), incluindo livros esgotados e textos inéditos, além de
posfácio, apêndice e cronologia da vida e obra. A capa ficou bonita, com a
hemiface da autora em rosa e os vastos cabelos em azul.
Após
30 anos de sua morte, Ana Cristina Cesar parece que se tornou unanimidade. No
início dos anos 80, li seus poemas com entusiasmo, pela originalidade,
modernidade, capacidade de surpreender e emocionar. Jamais me esquecerei dos
versos
é sempre mais difícil
ancorar
um navio no espaço
do poema intitulado “recuperação da adolescência”, do
primeiro livro Cenas de Abril, de 1979.
O
livro traz, na sequência, a “correspondência
completa” (1979), “luvas de pelica”
(1980), “a teus pés” (1982), que se
tornaria sua obra mais conhecida, “inéditos
e dispersos” (1985), “antigos e
soltos: poemas e prosas da pasta rosa” (2008), e por fim a “visita à oficina”, publicada pela
primeira vez na atual edição.
Esta
última seção revela os exercícios de escrita efetuados pela autora, ilustrados
com os respectivos fac-símiles, acompanhados de uma interessante observação do
curador Armando Freitas Filho:
“Afinal,
numa época em que os rascunhos quase desapareceram por causa do computador, que
absorve (1) todas as tentativas que parecem frustradas, nada
como publicar o progresso, o empenho e a arte de uma poeta definitiva nos
bastidores de sua criação.”
Eis o que estamos perdendo, com a chegada
inevitável do computador no modo de trabalhar dos escritores! Rascunhos,
exercícios de escrita, o denominado working
in progress, ideias soltas, versos esparsos, títulos de romance, anotações
para futuros desenvolvimentos, tudo isso que ainda não é a versão definitiva
mas que tem seu valor intrínseco, datilografado ou manuscrito, ficava guardado
num baú, numa caixa de sapatos, em alguma pasta de papelão com a etiqueta
RASCUNHO, papeis que seriam descobertos provavelmente após a morte do autor. Em
alguns casos, valem uma fortuna!
O
baú mais famoso é sem dúvida o de Fernando Pessoa, que até hoje continua sendo
desvendado. Há incontáveis outros exemplos, entre eles o baú de Kafka, revelado
ao mundo por Max Brod, seu amigo e testamenteiro.
Tudo
isso deixa de existir, pois o computador apaga tudo aquilo que o autor não
considera como a última e definitiva (e perfeita) versão de sua obra. Uma pena!
Numa
dessas pastas – a Pasta Rosa – foi encontrada uma tentativa (isso sou eu quem
diz) de haicai:
haikai
hem? hem? quital
ser Orlando
na vida real?
Termino
esta crônica com pequeno e brilhante texto de Viviana Bosi, sobre a poeta:
“Um
leitor sonhou que abria o livro A teus
pés. Então leu um poema que na vida acordada conhecia, mas como se fosse a
primeira vez. O perplexo sonhador, segurando o pequeno volume e repetindo as
palavras do poema, abismava-se com a dupla natureza da sua experiência: alguma
coisa meio incompreensível o atraia enquanto procurava fazer emergir, do fundo
da memória, uma sensação entre o reconhecimento e o espanto. Percebeu,
fascinado, o que constitui a ambiguidade insuperável daquela escrita: o leitor
sempre percorrerá o livro pela primeira vez, tomado pela perturbação. Pois um
dos efeitos da radicalidade de Ana Cristina Cesar consiste na impossibilidade
de se apossar de seus versos. Não há, o mais das vezes, unidade coerente que
proporcione estabilidade. A recordação concorre com a simultânea impressão de
estranheza.”
Não
posso descrever melhor do que isso a emoção provocada pela re-leitura de Ana
Cristina Cesar.
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(1) Na referida edição está impressa a palavra
“absolve”, que penso seja um erro de
impressão. Computador não é juiz.