Há um mês e meio postei neste blog
algum comentário sobre o novo livro de Colm Tóibín,
autor irlandês, intitulado O testamento de Maria (Companhia das Letras, 2012),
com uma bela tradução de Jório Dauster. Chamei-o de espetacular. (1)
Poucos
dias depois, mais precisamente na edição de 23 a 25 de agosto do ótimo
suplemento EU & Fim de Semana, do Valor Econômico, o senhor Rodrigo
Petrônio publicou resenha do citado livro, desancando-o (é o mínimo que posso
dizer...). Não restou pedra sobre pedra, na forma e no conteúdo: o livro foi
sumariamente desqualificado.
Confesso
a minha perplexidade, que só não foi maior porque pude ler nas entrelinhas o
forte sentimento religioso do resenhista, a influenciar de forma decisiva a
leitura do livro e, em consequência, seu juízo crítico de valor: uma verdadeira
heresia! Cheguei a pensar em escrever para o jornal, ao menos para registrar um
ponto de vista diferente, mas desisti: heresia não se discute. Para os
heréticos, a morte na fogueira e o fogo eterno do Inferno.
Ouvi
opiniões de amigos que reputo abalizadas, esperei que alguns deles lessem o
livro, e todos foram unânimes em elogiá-lo. Até que a edição de 21 de setembro
último da Folha de São Paulo traz a resenha de Luiz Felipe Pondé, com o título
“Crítica: ficção mostra Jesus como jovem ousado, inteligente e vaidoso”.
Vejamos
o que diz Pondé:
“O livro é uma pérola
de ficção, tendo Maria como narradora das origens do cristianismo. Realiza de
modo pleno tudo o que os títulos ruins sobre Jesus tentam, mas não conseguem.
Escandaliza, de certa forma, mas com a classe de quem de fato surpreende pela
criação dramática. A Maria que emerge das páginas é interessantíssima, não a
santa "mater misericordiae", mas uma mulher que se bate contra a
"criação" de uma seita ao redor da trágica história de seu filho.”
Avaliação final do livro pelo resenhista: Ótimo. (2)
Foi então que me lembrei de Caravaggio!
A morte da Virgem
Um quadro do pintor sobre a Virgem Maria foi-lhe
encomendado para a capela do advogado Cherubini, em Santa Maria della Scala, em Trastevere. Depois de pronto, poucos
puderam ver a Morte da Virgem, rapidamente retirado da capela pelos “santos” padres.
Por sorte, segundo a opinião respeitabilíssima de Roberto Longhi (1890-1970),
autor do célebre Caravaggio (Cosac
Naify, 2012), o quadro foi colocado a salvo na galeria do Duque de Mântua,
graças à sugestão de ninguém menos que Peter Paul Rubens.
Por que razão uma obra prima de tão grande
originalidade e beleza do já célebre Caravaggio seria rejeitada?
Por razões religiosas e doutrinárias. Caravaggio pintou Maria morta.
Definitivamente morta. Mortíssima. Para alguns, ainda segundo Longhi, o retrato era o de
uma cortesã das relações do pintor; para outros, o artista faltou com o decoro
ao retratar Maria inchada e com as pernas descobertas. O próprio Longhi afirma:
“O quadro parece mostrar os lamentos pela morte de uma plebeia da periferia, no
quartinho de aluguel, separado no máximo pelo toldo sanguíneo que pende das
traves do teto, e sem outras peças além de uma cama, uma cadeira e a bacia para
os lenços molhados. Quase uma cena de albergue noturno.”
Penso que a heresia de Caravaggio foi pintar Maria definitivamente
morta, e portanto, humana e mortal.
E acontece até hoje, com Saramago, em O evangelho
segundo Jesus Cristo, com Tóibín, em O testamento de Maria. O viés religioso
não é uma boa maneira de se olhar uma obra de arte.