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Wassily Kandinsky, 1909
A Cruzada das crianças, de autoria do francês Marcel Schwob (1867-1905), originalmente publicado em 1896, é uma pequena obra-prima!
O livro recria, em prosa poética, a lendária cruzada das crianças em 1212 rumo a Jerusalém, em busca do Santo Sepulcro. O autor apresenta o relato independente de oito “testemunhas”, todos ligadas ao evento: o goliardo, o leproso, o Papa Inocêncio III, três criancinhas, o escrevente François Longuejoue, o calândar (monge maometano), a pequena Allys e o Papa Gregório IX. Eis o que este último pronunciou:
“Deus trouxe para si as crianças que participaram das cruzadas, graças ao santo pecado do mar; seres inocentes foram massacrados, e seus corpos encontrarão asilo. Sete barcos naufragaram no recife do Recluso: construirei a igreja dos Novos Inocentes nesta ilha, onde nomearei doze prebendeiros. E tu me devolverás os corpos de minhas crianças, mar inocente e consagrado; tu as levarás às praias da ilha; e os prebendeiros acomodarão os corpos nas criptas do templo; e acenderão com os óleos sagrados lâmpadas perpétuas, para mostrar aos viajantes devotos estes pequenos esqueletos brancos estendidos na noite.”
Antes de algumas palavras sobre o que é fato e o que é lenda nessa história, ressalto a bela edição composta pela Editora 34 (2020), com prólogo de Jorge Luis Borges, ilustrações de Fidel Sclavo, e primorosa tradução de Milton Hatoum, da Coleção Fábula. O projeto gráfico é de Raul Loureiro, com belíssima capa a representar “o mar devorador que parece inocente e azul, mar de ondulações suaves orlado de branco como uma veste divina”, nas palavras de Gregório IX.
A Cruzada das Crianças, por Gustave Doré
A Cruzada das Crianças resultou de um conjunto de fatos esparsos, dando origem às mais variadas fantasias populares que se verificaram por volta do ano de 1212. Segundo o historiador Peter Raedts (The Children's Crusade of 1212, Journal of Medieval History, 3 (1977), nesse ano ocorreram “Duas movimentações de pessoas na França e na Alemanha. Algumas semelhanças entre as duas facilitaram que fossem mais tarde agrupadas como uma única história.”
“No primeiro movimento, Nicholas, um pastor de apenas 10 anos, da Alemanha, conduziu um grupo através dos Alpes até à Itália, na primavera de 1212. Cerca de 7 000 chegaram a Génova no final de agosto. No entanto, como as águas do Mediterrâneo não se afastaram para eles poderem passar como prometido, o grupo separou-se. Poucos conseguiram regressar a casa [alguns tornados escravos] e nenhum chegou à Terra Santa.”
“O segundo movimento, segundo Frederick Russell (Children's Crusade, Dictionary of the Middle Ages, 1989), foi conduzido por um jovem pastor de 12 anos chamado Estêvão de Cloyes que em junho de 1212 afirmou ser portador de uma carta de Jesus para o rei de França. Tendo conseguido atrair uma multidão de mais de 30 000 pessoas, dirigiu-se para Saint-Denis onde foi visto a praticar milagres. Aí, terão recebido de Filipe II de França, aconselhado pelos sábios da Universidade de Paris, ordens para dispersar, que a maioria terá seguido. Nenhuma das fontes contemporâneas aos eventos menciona planos para a multidão se dirigir a Jerusalém.”
A partir desses fatos, com alguma sustentação histórica, cronistas de várias origens criaram a lenda A Cruzada das Crianças. Talvez os participantes sequer fossem crianças, pois na mesma época surgiram várias migrações de pobres por toda a Europa, bandos chamados de pueri (do latim rapaz). Mais tarde o termo pueri foi traduzido para crianças.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzada_das_Crianças#cite_note-2