Poucos haverão de concordar com as ideias que passo a exprimir, e por várias razões, principalmente porque o Brasil é um país profundamente religioso, desde os primórdios da colonização portuguesa. O assunto, no entanto, aparece na mídia com bastante frequência. Acrescento, antes de mais nada, que não se trata do tema mais importante do momento, levando-se em conta o descalabro econômico em que nos encontramos e sua principal consequência, os milhões de desempregados. Mesmo assim, deixo aqui meu registro.
Preocupa-me, entre tantos problemas, a exagerada posição de destaque que ocupa a religião nos dias de hoje, ainda mais após o primeiro pronunciamento do presidente eleito. (O Professor Arthur Giannotti, em entrevista para o programa Roda Viva de ontem (29 out 2018), também mostrou-se impressionado com o que chamou de “rezaria”, no tal pronunciamento.)
Em reportagem de hoje para a Folha de S. Paulo – “Católico, Bolsonaro investe em pauta evangélica e domina segmento” – (30.out.2018), Anna Virginia Balloussier afirma que “Por sete vezes Jair Bolsonaro evocou, no primeiro discurso que deu após ser eleito presidente do Brasil, o ente máximo para as maiores religiões do planeta. E se chegou tão longe pode dar graças a Deus e também a líderes evangélicos que dizem falar em Seu nome.”
Acrescentou o presidente eleito: “O nosso slogan eu fui buscar naquilo que muitos chamam de caixa de ferramenta para consertar o homem e a mulher, que é a Bíblia Sagrada. Fomos em João 8:32: e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. A oração puxada pelo pastor e senador de saída Magno Malta foi mais longe: “A Tua palavra diz que a autoridade é ungida por Deus, e o Senhor ungiu Jair Bolsonaro”. Então, teremos um Presidente ungido! Talvez infalível?
Informa Balloussier que os “católicos ainda são o maior naco religioso do eleitorado, 56%, aponta pesquisa Datafolha. Mas boa parte só diz que é católica, sem necessariamente ser praticante, enquanto “evangélicos são muito mais ativos, compromissados”. Ou seja: fidelizam. Fora terem um senso de comunidade forte, no qual ideias circulam mais fácil. E que político não aprecia ter seu nome propagado num grupo coeso?” Os evangélicos eram 9% na década de 1990 e hoje alcançam 30%.
Continua a reportagem: “Desde o início da redemocratização, várias igrejas, sobretudo pentecostais, passaram a promover uma instrumentalização da política, e vice-versa. [O grifo é meu.] No segundo turno de 1989, o apoio foi em massa para Collor, e ali já começavam as fake news.” Malafaia diz à Folha que sua amizade com Bolsonaro começou por volta de 2006, ano de criação de um projeto de lei que horrorizou a bancada evangélica no Congresso: o PL 122, que criminalizava a homofobia. Pastores temiam ser processados caso pregassem contra o casamento gay, caso o texto fosse aprovado.
Em 2010, a relação com evangélicos se estreita após Bolsonaro abraçar a luta contra um pacote anti-homofobia a ser adotado em escolas, que a frente religiosa rotulou de “kit gay”.
Conclui o artigo da Folha: “Tudo isso ajudou a amalgamar o eleitorado evangélico, que deu a Bolsonaro cerca de 22 milhões de votos (70% do segmento), segundo projeção do Datafolha. Sua diferença com Fernando Haddad (PT) foi de 11 milhões de eleitores.”
Ora, fica cada vez mais evidente a ingerência da bancada religiosa nos assuntos de Estado, alguns deles fundamentais, como a Educação. Num país dito laico, a separação entre Religião e Estado é primordial, todos sabemos disso. Porém, se para serem eleitos os políticos precisam vender a alma ao diabo, a palavra “amalgamar” utilizada na reportagem acima está bem empregada.
Como discutir assuntos de relevância universal como o aborto e a eutanásia, dentre outros, diante da força crescente da bancada da Bíblia? Até que ponto os costumes já absorvidos pela sociedade contemporânea serão afetados por esta influência?
A pergunta que nos resta fazer é se ainda vivemos em um Estado laico.