domingo, 1 de março de 2020

Moisés iluminado


Fundamentalismo

– Então você acredita estar aqui por uma sequência infinita de acasos, e o homem de fé sou eu?



Iluminado

As pessoas deviam conversar mais comigo. Eu tô muito sabido.



Acostumamento

Ele dizia que cada sofrimento só valia a pena uma vez. Evitava zonas de conforto.



Expertise

Qualquer torturador com o mínimo de experiência sabe que as sessões devem ser monotonamente iguais, passo a passo.


                         Moisés Tito Lobo Furtado

A Mercadoria Mais Preciosa




A Mercadoria Mais Preciosa é uma fábula de Jean-Claude Grumberg, com tradução de  Rosa Freire D’Aguiar (Editora Todavia, 2019). A história é sombria, tristíssima, terrível mesmo, porém indispensável nos tempos atuais e sempre. Precisa ser lida.
            Grumberg nasceu em Paris em 1939. Autor de mais de 30 peças teatrais, roteirista de cinema e TV, recebeu todos os prêmios, inclusive o Moliere. 
            Digo que o livrinho de setenta e poucas páginas precisa ser lido, por dois momentos cruciais da narrativa. A primeira é quando um bebê enrolado em uma manta tecida com fios de ouro e prata é jogado na neve pela janela do Trem da Morte, um soco no estômago do leitor.
            A segunda, ainda mais dramática, é quando o pai, sobrevivente do campo de concentração, encontra a filha pequena cuidada pela mulher que a resgatou da neve – a lenhadora –, passa por ela, e pensa que ele já não tem nada para ofertar à própria filha. Naquele instante, ele ainda não se reconhecia como ser humano.
            Fatos históricos são misturados a sonhos, devaneios, pesadelos; realidade e ficção podem confundir o leitor, mas a mensagem final não deixa dúvida: trata-se de um maravilhoso conto de amor.
            Eis pequena amostra:

“Em muitas fábulas, e estamos de fato numa fábula, encontra-se um bosque. E nesse bosque um espaço mais denso que ao redor, no qual só se penetra com dificuldade, um espaço selvagem e discreto, protegido dos intrusos por sua própria vegetação. Um lugar retirado onde nem homem, nem deus, nem bicho entram sem tremer. No vasto bosque onde pobre lenhador e pobre lenhadora tentem subsistir, existe um lugar desses, ali onde as árvores crescem mais cerradas e mais frondosas. Um lugar que o machado dos lenhadores respeita e onde não se descobre o traçado de nenhuma trilha. Uma floresta densa por onde a gente só se esgueira em silêncio. As crianças, é claro, não têm autorização de ir lá. E até seus pais temem por os pés ali e se perderem.”

            Para alguns, o tema do Holocausto é um bosque impenetrável, tamanho sofrimento e dor que surgem ao tentar apenas pensar no ocorrido. Mas não se pode esquecer o ocorrido. Uma fábula pode ajudar.

Jun'ichiro Tanizaki





"Jun'ichirō Tanizaki (1886 - 1965) é considerado um dos maiores autores da literatura japonesa moderna. Sofreu influência de Allan Edgar Poe, participou da escola denominada A Tanbiha, que “valorizava a “arte e beleza acima de tudo”, contra o objetivismo da época.”
“Membro de uma família de mercadores, Jun'ichirō Tanizaki nasceu em Tóquio. Em sua juventude foi um admirador do mundo ocidental e das conquistas da modernidade, tendo vivido por um curto período em uma casa de estilo ocidental em Yokohama, subúrbio de Tóquio e lar de estrangeiros expatriados. Lá levou um estilo de vida boêmio. Em 1923, um forte terremoto e consequente destruição da sua casa, forçaram Tanizaki a se mudar para Ashiya, na região de Kyoto e Osaka, fornecendo cenários ao seu romance As irmãs Makioka.” 
“O centro dos seus interesses é a preservação da língua e da cultura tradicional do Japão. Tanizaki faleceu aos 79 anos, em 1965, um ano após ter sido o primeiro autor japonês eleito membro honorário da American Academy and Institute of Arts and Letters.”
Principais obras: Amor insensato (1924; Companhia das Letras, 2004), Voragem (1928; idem, 2001), Há quem prefira urtigas (1930; idem, 2003), A chave (1956; idem, 2000) e Diário de um velho louco (Estação Liberdade, 2002), Elogio da Sombra. Tanizaki traduziu para o japonês autores ocidentais, como Stendhal e Oscar Wilde.
“Após a Segunda Guerra Mundial Tanizaki alcançou proeminência literária, obteve muitos prêmios e até sua morte foi considerado o maior autor vivo de seu país. A maioria de seus livros é altamente sensual, alguns centrados no erotismo. Em praticamente todos eles se destacam a agudeza de sua percepção e uma sofisticação irônica. Muito embora seja lembrado por suas novelas e contos, Tanizaki também escreveu poesia, drama e ensaio. Ele foi, acima de tudo, um magistral contador de histórias.”



Esta longa introdução se justifica em função da minha incurável ignorância, pois nunca ouvira falar do autor. Há poucos dias encontrei obra dele numa livraria, li a primeira página, gostei muito, não larguei mais o livrinho até que chegasse à última linha. Um primor de literatura! São duas novelas: A ponte flutuante dos sonhos seguido de Retrato de Shunkin, tradução do japonês de Andrei Cunha, Ariel Oliveira e Lídia Ivasa (Estação Liberdade, 2019).
Assim tem início A ponte flutuante dos sonhos:

“Veio hoje
O cuco cantar
na Toca da Garça-Cinzenta:
fim da travessia
da Ponte flutuante dos sonhos.”

“A epígrafe dessa história é uma composição de minha mãe. No entanto, o problema é que tive duas mães – uma de nascimento, outra que veio depois – e, ainda que a mais provável autora do poema seja a mãe de sangue, jamais terei certeza disso. Acredito que os motivos de minha dúvida se tornarão claros ao longo da leitura, mas posso desde já adiantar um deles: as duas mulheres eram conhecidas pelo nome de Chinu.”

A leitura segue amena, inocente, quase pueril às vezes, mas a história vai se adensando até surgirem erotismo e luxúria, sem que o autor nunca perca a elegância no exprimir-se. 
Surpreendente o texto de Jun’ichiro Tanizaki!



Homenagem a Rui Chapéu



Rui no Palácio do Bilhar em São Paulo
Wilson Melo / Folhapress



Alguns amigos meus talvez não saibam de minha paixão pela sinuca. Falo pouco dela porque nunca fui um bom jogador, nem vantagem posso contar, mas isso não diminui a paixão. Tenho ainda hoje mesa oficial de sinuca, definitivamente coberta, por problemas na coluna.
Este pequeno preâmbulo justifica meus sentimentos diante da notícia veiculada ontem pela Folha de S. Paulo: Morre Rui Chapéu, lenda da sinuca brasileira (29 fev 2020).
José Rui de Mattos Amorim, o Rui Chapéu, nasceu em Itabuna (BA), em 1940, e “estreou no Show do Esporte em 1984, quando venceu um desafio em que bateu os 12 melhores jogadores de sinuca do país.”
"Todo mundo gosta de sinuca. O presidiário e o policial gostam. A senhora de 70 anos gosta e a criança vê e vai na televisão tentar pegar as bolas coloridas que se mexem", disse Rui Chapéu em entrevista ao UOL, em 2014.”
“Rui Chapéu começou a jogar sinuca aos 12 anos em sua cidade natal. Aos 17, ele já era considerado o melhor jogador do município que hoje tem cerca de 200 mil habitantes. "Ia para o salão jogar mesa grande, naquela época não tinha mesinha. A polícia chegava pela frente e a gente saia correndo pela porta dos fundos". Aos 18 anos, teve de abandonar o esporte para ajudar a família e começou a trabalhar como caminhoneiro. Ele só voltou a jogar sinuca em 1973, após se mudar para São Paulo.”
“A notoriedade para além dos salões de bilhar começou em 1979, depois de participar algumas vezes do programa de Silvio Luiz na TV Record. Sua fama decolou quando começou a participar do Show de Esportes, onde chegou a enfrentar o inglês Steve Davis, seis vezes campeão mundial de sinuca nos anos 1980. "Ele veio várias vezes aqui e perdi mais do que ganhei. Mas ganhei uma vez de 6 a 1", contou Rui Chapéu.  
“É considerado um dos responsáveis por popularizar o esporte, que era associado à criminalidade.”

Minha paixão pela sinuca surgiu quando morava em Londres, nos idos de 80. No inverno, os intermináveis torneios dos grandes mestres varavam as madrugadas e me hipnotizavam diante da tv. Não perdia jogo do Steve Davis! Eu sonhava em voltar para casa e comprar uma mesa de sinuca.