Noite de sábado, 3 de outubro de 1959. Pai e filho
aguardam ansiosos pelo jogo que terá início em poucos minutos, e que será
transmitido pela TV, em preto e branco, imagem ruim, escura, mas na cabeça do
menino a camisa do Palmeiras é mais verde do que nunca.
O jogo será em Vila Belmiro, campo do Santos F.C.; o
Palestra tem um grande time, mas o Santos tem Pelé. Com poucos minutos de jogo
o Palmeiras abre o placar. A vibração do menino é enorme.
Logo em seguida o Santos empata, faz mais um, já está
vencendo por 2 a 1, para desespero do menino. O resultado final é um
catastrófico, inacreditável, inesquecível 7 a 3 para o Santos.
O menino, inconsolável, não pode compreender aquele
placar. O Palmeiras não pode tomar 7 gols numa única partida, isso é
impensável. Escondido no quarto, o menino chora em silêncio. De vergonha.
No returno, jogando em São Paulo, o Palmeiras goleia
por 5 a 1, a mesma diferença de 4 gols do fatídico jogo em Santos. Isso serve de
pouco consolo: a diferença é mesma, mas tomar 7 é demais.
* * *
O campeonato prossegue equilibradíssimo e termina com
Palmeiras e Santos empatados em primeiro lugar. A decisão será em melhor de 4
pontos (ou seja, quem fizer 4 pontos será o campeão). O primeiro jogo, em 5 de
janeiro de 1960, termina em 1 a 1. Dois dias depois, o segundo jogo, e novo
empate: 2 a 2.
A decisão fica para o dia 10 de janeiro,
no Estádio do Pacaembu. Aos 3 min Pelé
abre o placar. Aos 43 min ainda no primeiro tempo, Julinho Botelho empata o
jogo. Romeiro, de falta, faz o segundo do Palmeiras aos 3min do segundo tempo.
Palmeiras
Campeão!
Como houve 3 jogos para esta definição, o Palmeiras
recebe o título de Supercampeão de 1959!
As
escalações de ambos os times:
PALMEIRAS:
Valdir; Djalma Santos, Valdemar Carabina e Geraldo: Zequinha e
Aldemar; Julinho Botelho, Nardo, Américo, Chinesinho e Romeiro.
Técnico:
Osvaldo Brandão.
SANTOS:
Laércio; Urubatão, Getúlio e Dalmo; Zito e Formiga; Dorval,
Jair Rosa Pinto, Pagão, Pelé e Pepe.
Técnico: Lula.
* * *
O relato acima
permanecia vivíssimo para menino que ainda hoje habita em mim, até o momento do
jogo em que o Palmeiras venceu por 5 a 1, e que não se constituiu num consolo.
Ou seja, o resultado anterior de 7 a 3 foi tão traumático, que a memória do
restante do campeonato foi bloqueada, a despeito do feliz desfecho, o
supercampeonato! Deste, não tinha a menor recordação.
Quando busquei na Internet
os detalhes do 7 a 3, para escrever esta crônica, encontrei o desenrolar dos
fatos aqui narrados, e minha memória foi completamente recuperada. A escalação
do Palmeiras, lembrei-me dela quase que integralmente. Do Santos, lembrei-me de
Zito, Formiga, Dorval, Jair, Pagão, Pelé e Pepe, grandes jogadores.
Três conclusões
importantes!
1) Futebol é coisa séria.
2) Trauma é trauma.
3) Temos muito o que aprender sobre nossa própria
memória, e portanto, sobre o que consideramos fatos e verdades indiscutíveis
sobre nosso passado.
* * *
Freud escreveu dois artigos interessantíssimos sobre
o tema: “O mecanismo psíquico do esquecimento” (1898) e “Lembranças
encobridoras” (1899). No segundo artigo ele afirma:
“Ninguém contesta o
fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços
inerradicáveis nas profundezas de nossa mente. Entretanto, ao procurarmos
averiguar em nossa memória quais as impressões que se destinaram a
influenciar-nos até o fim da vida, o resultado é, ou absolutamente nada, ou um
número relativamente pequeno de recordações isoladas, que são frequentemente de
importância duvidosa ou enigmática. É somente a partir do sexto ou sétimo ano —
em muitos casos, só depois dos dez anos — que nossa vida pode ser reproduzida
na memória como uma cadeia concatenada de eventos. Daí em diante, porém, há
também uma relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua
retenção na memória. O que quer que pareça importante por seus efeitos
imediatos ou diretamente subsequentes é recordado; o que quer que seja julgado
não essencial é esquecido. Quando consigo relembrar um acontecimento por muito
tempo após sua ocorrência, encaro o fato de tê-lo retido na memória como uma
prova de que ele causou em mim, na época, uma profunda impressão. Surpreendo-me
ao esquecer uma coisa importante, e talvez me sinta ainda mais surpreso ao
recordar alguma coisa aparentemente irrelevante.”
Dois mecanismos psíquicos
diferentes, porém análogos, estão em jogo. As “lembranças encobridoras”
descritas por Freud têm com o objetivo obscurecer experiências perturbadoras, e
que não podem vir à tona. O caso do menino palmeirense é bem o oposto. O trauma
deixa sua marca, perturba a memória da “cadeia concatenada de eventos”, no
dizer freudiano.
* * *
A propósito, nos dois próximos fins-de-semana
Palmeiras e Santos vão decidir o Campeonato Paulista de 2015! O menino haverá
de torcer desesperadamente...