sábado, 10 de abril de 2021

Meu Pai

 

 

Posso me lembrar, de pronto, de dois filmes recentes que tratam do tema da demência, de forma a emocionar profundamente àqueles que gostam de cinema: Amor e Para sempre Alice. A eles se soma agora o espetacular The Father (Meu Pai), estrelado por Anthony Hopkins e Olivia Colman. O diretor Florian Zeller é autor da peça de teatro Le Père, que deu origem ao filme; a adaptação é muito bem feita, de modo a explorar os elementos audiovisuais do cinema com maestria.

            Desde as primeiras tomadas no interior de um amplo apartamento o diretor busca desorientar o expectador com uma sequência de cenas nas quais a troca contínua de personagens não faz qualquer sentido para o protagonista – nem para o suposto sadio expectador. Desde logo o brilhante desempenho de Hopkins acentua tal impressão, tamanha a expressividade dos diálogos, quando ele ainda aparenta ser um homem normal, que apenas não sabe o que está acontecendo. Logo em seguida o estado de demência torna-se evidente. A partir daí, não tenho adjetivos para descrever a atuação desse ator. 

            Passados dez ou quinze minutos desde o princípio do filme pude notar em mim profundo desconforto, uma certa aflição, que só o cinema de qualidade pode proporcionar; afora aquilo era meu, e ainda o é no momento em que escrevo esta crônica, independentemente da história.

            Meu Pai fala das relações da pessoa idosa com a família, filhos, da vida cotidiana, quando a velhice é acompanhada da deterioração mental e a percepção do mundo real sofre definitivas transformações. Cenas emocionantes entre pai e filha são valorizadas pelas atuações de Hopkins e Olivia Colman. 

Nas cenas finais, a dor psíquica causado pela doença, a sensação de completo abandono e desamparo, a ponto de Anthony – o protagonista toma emprestado o nome do ator e sua data de nascimento – chamar pela mãe e chorar como um bebê.

Há grande diferença em retratar a demência já instalada, de que trata Meu Pai, e o processo de demenciação, revelado em Amor e Para sempre Alice. No primeiro filme as alucinações, delírios, perda grave da memória, desorientação de tempo e espaço, mudanças bruscas e violentas de humor surgem desde o princípio, sem que se possa fazer qualquer ideia de quem foi aquela pessoa antes da doença. Nos dois outros filmes citados, os pequenos lapsos, os esquecimentos – em especial de nomes próprios, o que pode ser bastante aflitivo –, as alterações inesperadas e desproporcionais de humor, até mesmo a depressão, marcam, como o próprio nome indica, o processo de demenciação. Em ambas as situações, o sofrimento do paciente e de quem está a sua volta é sempre muito grande.

Quando me refiro àquilo que é meu, aos 74 anos de vida, é só meu: esta crônica é uma pálida tentativa de repartir com o eventual leitor o modo como vi The Father. Tenho enorme dificuldade em lembrar nomes próprios; há dois dias coloquei açúcar cristal no saleiro e estraguei a salada de minha mulher; esqueço o gás do fogão aceso após retirar a panela do fogo; ligo a máquina de lavar para adiantar o serviço e me esqueço de estender a roupa para secar; perco o celular pela casa; quando não posso me esquecer de algo, tomo nas mãos um objeto qualquer, para não me deixar esquecer, mas acabo me esquecendo da serventia daquele estranho objeto. Melhor parar por aqui.

O exercício diário de escrever é a tentativa de preservar o que resta de minha mente. Não se trata de tentativa desesperada porque me é fonte de grande prazer.

Vale a pena ver Meu Pai.