segunda-feira, 2 de junho de 2014

Machado facilitado




Para minha surpresa, no mesmo Caderno 2 de O Estado de S. Paulo deste domingo último, dois articulistas de peso, João Ubaldo Ribeiro e Humberto Werneck, trataram do “Machado facilitado”, se é que se pode chamar assim a publicação de O Alienista simplificada por Patrícia Secco. Portanto, o assunto permanece em aberto.
Nem preciso dizer que Ubaldo e Werneck, de forma bem humorada, porém sarcástica, descem o malho no tal projeto. Penso que tratar deste assunto – cometer o sacrilégio de adulterar uma vírgula sequer em Machado de Assis –, embora tenha sua importância pedagógica, é como chutar cachorro morto. Somos todos contra! É possível que a própria Patrícia esteja arrependida da empreitada, tamanha a gritaria que provocou. O Estado (MEC), responsável pela publicação, e infalível como sempre, jamais se pronunciará arrependido.
É possível extrair/pensar alguma coisa de útil diante deste insólito acontecimento? Parto do princípio de que Patrícia Secco esteja bem intencionada, pois, do contrário, não há porque tratar do assunto. Assim sendo, a constatação é: Como é difícil ensinar!
Ensinar nunca foi dar de mão-beijada.
Quanto mais mastigado for oferecido o conteúdo, menos interesse há de despertar no aprendiz. A preguiça sim, haverá de ser alimentada. A materialização desta ideia é a famigerada apostila: não há nada mais antipedagógico, mais emburrecedor que a apostila. (Ainda há alunos e professores que a desejem.)
Se for difícil demais, o aluno (ou alguns deles) necessitará de ajuda, e a presença do professor – que não poderá ser substituído por um tablet – será então de fundamental importância, ou o aprendiz criará ojeriza pela matéria. Ler Machado de Assis cedo demais pode propiciar este efeito nocivo. (Lembro-me da primeira vez que abri o Grande Sertão: não passei da primeira página. Anos depois, eu que não conhecia o desfecho da história, emocionei-me às lágrimas com o que considero o melhor livro que já li até hoje.)
Motivar o estudante será sempre uma estratégia inteligente por parte de quem pretende ensinar. Mas o esforço indispensável do aprendiz ainda assim deverá ser individual e intransferível. (Certa feita, num seminário com estudantes de Medicina, apresentei um problema e iniciei a discussão, na expectativa de que o grupo chegasse a uma resposta satisfatória. A cada tentativa dos alunos eu respondia com um não. Após inúmeras respostas que eu julgava incorretas, um aluno interpelou-me, de modo grosseiro e agressivo, e disse Porque o senhor não dá logo a resposta? De fato, se eu tivesse oferecido a resposta sem discussão, não teria passado por este dissabor. Como é difícil ensinar.)
Simplificar não é motivar. Dar de presente um dicionário pode vir a ser uma motivação. O Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (Lexicon, 2010), traz magnífico prefácio de Francisco Buarque de Hollanda, isso mesmo, o Chico, intitulado Os dicionários de meu pai. Pouco antes de morrer, o “pai do Chico” (assim o famoso Sérgio Buarque de Hollanda referia-se a si próprio) deu de presente ao filho a primeira edição deste dicionário, e dele o nosso Chico nunca se separou. Talvez a MPB não fosse a mesma sem o Dicionário Analógico...)
Enfim, o tema “como ensinar” é inesgotável, e não é uma croniquinha como esta que irá fazê-lo. São apenas digressões sobre a tal simplificação de Machado, o que equivale a tirar leite de pedra.

A leiteira, de Johannes Vermeer


Johannes Vermeer (Delft, 1632 - Delft, 1675), pintor holandês, expoente do Século de Ouro.

A leiteira, pintado entre 1657 e 1658, é um dos destaques do belíssimo Rijksmuseum, em Amsterdam.

Alberto da Costa e Silva ganha o prêmio Camões



Alberto Vasconcellos da Costa e Silva (São Paulo, 12 de maio de 1931), diplomata, poeta, ensaísta, memorialista, historiador, membro da Academia Brasileira de Letras, acaba de receber o Prêmio Camões de 2014.
Desejo destacar aqui seu trabalho de poeta, pois a Poesia precisa estar sempre em destaque.
Transcrevo o poema Canção romântica, do volume Poemas Reunidos (Nova Fronteira, Biblioteca Nacional, 2000).

A amada ri. A criança,
que nela dorme, desperta.
Entra um perfume de lua
pela janela, por onde
nos chega o rumor da fonte
e dos passos pela areia.
Sentimos no ser de agora
dos limões o sortilégio,
das tristes canções de antanho
o amargurado mistério.

A amada ri. A criança
que outrora fui, também ri.
Recordo manhãs vividas:
vou sozinho para o tênis.
Nunca mais tenho dez anos...
Da minha fala imprudente
a amada ri. Também rio.
Colhemos pêssegos duros.
Rindo, transpomos os rios.
Passam moças nos seus pôneis.

A amada ri. A palavra
amor! se perde nos verdes
sobre as colinas cansadas.
A criança alvoroçada,
que dantes nela existia,
volta a dormir, sossegada.


There was a man of double deed


“There was a man of double deed” é o primeiro verso de um poema anônimo clássico, que pode ser lido no original no site:  http://www.slate.com/articles/arts/poem/2008/11/there_was_a_man_of_double_deed.html
                  É com prazer que publico aqui a bela tradução realizada pelo poeta, meu amigo, Aldo Pereira Neto.




Era um homem, que com ambas as mãos,
Enchera o horto de muitos grãos;
Quando os grãos começaram a crescer,
Foi como se a neve não cessasse de descer;
Quando a neve, então, começou a se fundir,
Foi como a nau sem âncora, livre pra partir;
Quando as velas se enfunaram, algumas,
Foi como se aves não tivessem mais as plumas;
Quando as aves desenharam o céu, então,
Foi como se a águia não voasse mais em vão;
Quando o céu, depois, iniciara o seu rugir,
Foi como um leão, à porta, sempre a ir e vir;
Quando a porta começou a estalar,
Foi como um bastão, no dorso, a penetrar;
Quando o dorso era só dor, só agonia,
Foi como se uma lâmina o rasgasse, fria, fria;
E quando o coração vazou seu sangue em mim,
Foi morte, e morte, e morte enfim.