Ventos de 200Km/h arrancaram as placas com os nomes das ruas. Moradores
não puderam mais encontrar suas casas.
terça-feira, 3 de março de 2015
Uma noite no inferno
Rrrrróóóórrrrróóóóglugglugrrrróóóótosstosstossaiiiii...
Difícil onomatopeia. O ruído vem da
traqueostomia entupida de secreção, do paciente no leito em frente ao meu. Ele
está se afogando em secreção, não pode falar, ninguém o socorre. Grito pelas
enfermeiras. Ninguém atende.
Tão logo cheguei ao meu leito da UTI,
após um cateterismo cardíaco, uma auxiliar de enfermagem apresentou-se, Meu
nome é Gladis, se precisar é só chamar. Perguntei se havia algum dispositivo,
um botão qualquer para solicitar atendimento, e ela respondeu, É só chamar pelas
meninas, elas estão logo ali.
Continuo gritando, Meninas meninas
meninas, com a impressão de que o afogado fará uma parada cardíaca a qualquer
momento: morte por hipóxia, falta de oxigênio. Até que surge a auxiliar. Ela
passa tranquilamente em frente ao afogado e dirige-se a mim, Chamou? Chamei,
mas quem precisa de atendimento é o paciente aí da frente, precisa ser
aspirado. Ela dá meia volta, olha longamente para o paciente e sai. Volta
alguns minutos depois com material para aspiração. O homem resiste, respira
melhor depois do procedimento. Também eu, aliviado.
Agora posso reparar melhor no
ambiente onde estou. O barulho dos bips dos monitores é atordoante. Todos
apitam ao mesmo tempo, para sinalizar algum problema com a frequência cardíaca,
frequência respiratória, pressão arterial, gotejamento da hidratação venosa. Na
maior parte das vezes não há problema algum com os pacientes ou comigo, os
aparelhos é que estão com defeito ou mal calibrados, e apitam aleatoriamente.
O monitor ao lado de minha cabeceira
também começa a apitar. Após alguns minutos, a auxiliar vem, aperta um botão, o
aparelho silencia, ela sai. Dez minutos depois volta a apitar. A cena repete-se
ao longo de toda a noite. Pergunto a ela se não pode desligar o monitor, Não
pode. Fico esperando pelo próximo disparo, o que me causa enorme irritação.
De 4 em 4 horas alguém fura meu dedo
mínimo, É para a glicemia, explicam. Mas não sou diabético, digo em vão, e todas
as dosagens apresentam-se normais. Pela manhã, na passagem de plantão, ouvi uma
enfermeira relatar para a colega, Ele é diabético. Então compreendo a razão das
picadas durante toda a noite. Mas não sou diabético...
Depois de 12 horas em jejum
trazem-me uma sopa e um pacotinho com uma colher de plástico, que são colocados
na mesa auxiliar ao lado do leito. A janta, informa a moça. E sai. O leito
permanece com a cabeceira baixa. Minha perna direita está amarrada ao pé da
cama, completamente imobilizada. Um braço está ocupado pelo aparelho de pressão
e por um oxímetro (medidor da oxigenação sanguínea) no dedo indicador. O outro
braço ocupado pela hidratação venosa. Retiro o oxímetro para mover-me melhor,
mas o monitor dispara; recoloco o dispositivo, o monitor silencia. A fome
aperta, dou um jeito de alcançar a vasilha, destampá-la, pegar a colher,
iniciar a ginástica de levá-la à boca. Identifico pedaços de inhame cozido, num
caldo espesso, sem sal. Até que, o que eu mais temia, acontece: derramo sopa no
lençol. Envergonhado, a irritação aumenta.
Grito por ajuda, vontade de urinar.
Trazem-me o papagaio, Vou deixar aqui (na mesma mesinha da sopa), para quando o
senhor precisar. Tenho dificuldade para manejá-lo, molho o fraldão. A auxiliar
voltou, Está tudo bem?, Sim, mas, por favor, gostaria que me trocassem a fralda
e o lençol, sujo de sopa, Isso não é nada, é pra já. Não voltou. Faço o mesmo
pedido 4 vezes. Na quarta vez, a moça responde, O fraldão não posso trocar, o
almoxarifado já fechou, mas o lençol eu troco. Não trocou.
As picadas no dedo para glicemia
continuam, começo a pensar que sou diabético. Porém, à meia noite trazem-me um
generoso pedaço de bolo, sabor coco, úmido, delicioso, que engulo com tanta
avidez que chego a engasgar. A única
experiência agradável até agora.
Não posso me virar no leito, com a
perna imobilizada. Minhas costas doem, o que aumenta a irritação.
De repente: rrrrróóóórrrrróóóóglugglugrrrróóóótosstosstossaiiiii...,
o afogado torna
a afogar-se. Grito pelas meninas. A cena anterior se repete.
O tempo parou. A noite não passa. Perdi
a noção das horas. Dou um cochilo, acordo assustado pois minha cabeça pendeu
sobre o aparelho de pressão, que ao insuflar-se automaticamente, me desperta. O
monitor continua apitando. Uso o papagaio outra vez e molho ainda mais a
fralda. A umidade da urina incomoda, causa prurido. Outra ginástica: retiro a
fralda e jogo-a no chão. Alívio. Agora vou molhar a cama, pensamento que soa
como uma vingança infantil.
Exausto, outro cochilo: acordo
assustado, Uma picadinha para glicemia. Não tenho mais dúvida, sou diabético.
Agora é vez do outro paciente
começar a gritar, Moça moça moça moça moça moça. Ninguém atende.
A dor nas costas torna-se insuportável.
Se minha mulher pudesse estar aqui, dava-me um anti-inflamatório. O médico de
plantão não permitiu que ela ficasse, mesmo informado que ela é uma colega, e
que tenho mais de 65 anos. Ele infringiu a lei. Não sei por quê, não tivemos
reação diante de tamanha arbitrariedade. Permaneci só, como uma criança.
Mais uma picada, É para exame de
sangue, diz a auxiliar, sem maiores informações. Olho ansiosamente para a
fresta da janela em frente, na esperança de que esteja amanhecendo. Vejo
escuridão. As costas doem terrivelmente. Os monitores continuam apitando.
De repente chegam dois sujeitos com
um aparelho de raios x portátil, Vamos fazer uma radiografia de tórax, Tudo bem.
Pelo menos, mobilizam-me no leito, aliviam por alguns minutos a dor nas costas.
(Tive alta, dois dias depois, sem saber o resultado deste exame.)
Rrrrróóóórrrrróóóóglugglugrrrróóóótosstosstossaiiiii...
O dia começa a clarear.
Desconsolo
Chegou em casa chorando. Tinha perdido um
dente-de-leite. Os professores não puderam encontrá-lo.
Assinar:
Postagens (Atom)