quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A viagem



 

No dia em que completava 75 anos, Adalberto embarcou pela primeira vez em um avião, presente de aniversário que ele mesmo lhe ofertava, depois de concluir que era uma vergonha chegar àquela idade sem nunca ter andado de avião: o destino, a bela cidade praiana que conhecera por fotografias em uma revista de turismo, e matava assim dois antigos desejos, andar de avião e conhecer o mar.

            Não tinha medo de avião, mas Adalberto não conseguia esconder a ansiedade desde que saíra de casa, já no taxi do amigo que fora escolhido com o propósito de incentivá-lo, de lhe emprestar coragem para a viagem, já que não aceitara a sugestão  de uma companhia, Se eu vivo só, que sentido faz viajar acompanhado?, retrucou, irritado com a observação de Jurandir, Pois então vá com Deus, Adalberto, vai dar tudo certo, era isso que ele precisava ouvir, Obrigado Jurandir, até a volta, você me pega aqui em uma semana, Combinado.

            O embarque ocorreu sem atropelos, a decolagem no horário previsto, uma aeromoça loura de olhos azuis ofereceu-lhe copo d’agua, ele aceitou, turbulência zero, Adalberto estava mesmo nas nuvens, além do que a aeronave chegou ao destino com dez minutos de antecedência, devido aos ventos favoráveis, anunciara o comandante.

            Já de posse da bagagem, uma única mala de tamanho pequeno que trazia na alça uma fita vermelha para que fosse facilmente identificada na esteira – conselho do experiente Jurandir –, Adalberto olhou para o grande relógio no saguão do Aeroporto que marcava onze horas de uma manhã luminosa, olhou para o movimento em volta, gente que ia e vinha, tornou a mirar o relógio, e então percebeu que não fazia a menor ideia de onde se encontrava, Estou perdido!

            Era difícil pensar, confusão era a palavra certa, no minuto seguinte o relógio marcava quinze minutos para o meio-dia, Aqui o tempo passa mais rápido? e permaneceu agarrado à alça da pequena mala, tentativa de manter contato com o mundo real, e nesse mundo de verdade Adalberto encontrou uma cadeira, sentou-se, procurou organizar os pensamentos, foi aí que percebeu que o sentimento dominante era o medo, muito medo, sem compreender bem do que sentia medo, se ainda era medo ou já era pavor, sim, era pavor de ficar preso naquele lugar sem água nem comida até a chegada da morte, e mais, seu cadáver jamais identificado, ad aeternum insepulto.

            O relógio, outra referência além da mala para com o mundo dos vivos, marcava agora dezesseis horas, o movimento das gentes permanecia o mesmo, Gentarada..., 

Adalberto grunhiu em voz alta, e foi aquele ruído, mais que a palavra, que chamou a atenção de Dona Beatriz, sentada bem em frente de Adalberto, que já vinha observando o comportamento daquele homem de olhar vago vazio, perdido no tempo, alheio ao espaço que o rodeava, e que de tempos em tempos dirigia o olhar para o relógio do saguão, buscando um sentido para o que estava vivendo, Ele não parece esperar pela hora do voo, mais parece estar voando, Dona Beatriz pensou e riu consigo mesma, ela que se considerava uma velha bem humorada.

            Quase todos os dias Beatriz, solitária senhora esperta e viva no esplendor de seus 71 anos, dava um pulinho naquele Aeroporto, só para ver gente, Ninguém me nota por aqui, pareço transparente, as pessoas estão muito ocupadas com a partida ou com a chegada, as primeiras seguem direto para o ponto de embarque, as segundas para a saída, donde concluo que este espaço é virtual, como gostam de chamar hoje em dia, ele não existe de fato, quem está aqui está em transe, não em trânsito como muita gente pensa, menos eu, que venho para observar as pessoas e me divertir sem que elas me percebam.

            Em seguida, séria, pensou, São os velhos que precisam cuidar dos velhos, e sentou-se ao lado de Adalberto, O senhor está bem?, Hã?, O senhor está bem?, Sim, E por que olha tanto para aquele relógio, Para saber por quê o Tempo está passando tão depressa, Boa resposta, o senhor está chegando ou partindo?, Como assim?, O senhor vem de, ou vai para algum lugar?, e pela primeira vez desde que chegara ele conseguiu reunir uns poucos pensamentos, ideias esparsas, permaneceu em silêncio por alguns minutos, a mulher esperou paciente pela resposta, Eu vim conhecer o mar.

            Muito bem, então acaba de chegar, e onde pretende se hospedar, Dona Beatriz perguntou, ela mesma achando que a pergunta era difícil para alguém tão confuso, Não faço a menor ideia, respondeu o velho, agora revelando-se menos ansioso, até achando uma certa graça na situação, o que animou Beatriz a decidir-se pelo que fazer, Pois vamos para minha casa, eu moro aqui perto, podemos ir a pé ou tomar um taxi, se o senhor preferir, Acho melhor o taxi, Então vamos, que o senhor deve estar com fome e eu tenho prontinha uma bela canja-de-galinha.

            A modesta aposentadoria de bibliotecária municipal e a vida regradíssima permitiam que Beatriz vivesse sem grandes sobressaltos, além da ajuda financeira que recebia da única filha, esta sim, bem de vida, morando em Portugal, membro da diretoria de importante multinacional, para quem a mãe mantinha arejado quarto de hóspedes, visita que recebia uma vez por ano, perto do Natal, e foi nesse quarto que ela instalou Adalberto, que até aquele momento não tinha se identificado, esqueceu o próprio nome enquanto permaneceu no Aeroporto, mas ao chegar em casa de Beatriz e pedir um copo d’água, Me chamo Adalberto, e a senhora?, Beatriz, muito prazer, sinta-se em casa, moro sozinha, e tirante o barulho dos aviões que agente acostuma, isso aqui é um sossego.

             Não se sabe se efeito da saborosa canja, o fato é que Adalberto acordou por volta das duas da tarde, ainda confuso, Bom dia, dormi muito, Boa tarde, que bom, daqui a pouco vamos almoçar, retrucou Beatriz, mais aliviada, havia pensado até em chamar um médico pois o homem não acordava nunca, mas agora era visível a melhora dele, movia-se com calma desenvoltura, A senhora, como se chama mesmo?, Beatriz, Ah!, e como vim parar aqui nessa casa, Em minha casa, Na sua casa, Viemos de taxi do Aeroporto, Sim, me lembro da chegada ao Aeroporto, havia um grande relógio que andava muito depressa, Beatriz quase soltou uma gargalhada, conteve-se, Passou, vamos tratar do presente, você pode me mostrar alguns documentos, o seu celular, voucher de algum hotel onde pretende se hospedar, qualquer coisa que sirva para compreendermos melhor o que está acontecendo?

            O senso prático de Beatriz colocou ordem na casa, tudo esclarecido, havia mesmo a reserva de hotel para uma semana, além do bilhete com o voo de regresso registrado no celular, Se não for incomodar posso ficar aqui mais um dia?, Pode ficar a semana inteira, se lhe aprouver, e se veio para conhecer o mar, amanhã, mais descansado, lhe apresento o Oceano Atlântico, ela bastante animada com a perspectiva de companhia por tantos dias, Você não teve medo de trazer para casa um completo desconhecido?, Não, eu gosto de gente, De gente doente?, Acho que você teve uma isquemia cerebral leve, sem qualquer paralisia, a fala preservada, pensei que aquilo ia passar logo, e veja como ficou bom só com uma canjinha, Foi a sopa mais gostosa que já tomei!

            Adalberto conheceu o mar-oceano, sentaram-se ambos diante da praia à sombra de uma antiga castanheira, beberam água-de-coco e conversaram, conversaram muito, do jeito que se deve conversar, cada um a escutar o outro e só depois falar, falaram de tudo, eram cento e quarenta e seis anos de experiências de vida, Beatriz contou como tinha sido viver entre os livros durante quarenta anos, Adalberto, orgulhoso, realizado, falou de toda uma vida como professor de português a ensinar em escola pública, Planta-se muito, colhe-se pouco, filosofou, Mas valeu a pena para uma alma que não é pequena, Gosta do Pessoa, Muito, e quando voltaram para casa a noite caía.

            Passada aquela mágica semana Beatriz afirmou, Felicidade é isso, e naturalmente, fez questão de levar seu hóspede ao Aeroporto duas horas antes do voo, caminharam até o portão de embarque em silêncio, despediram-se com um longo abraço e indisfarçáveis lágrimas  a marejar os olhos, prometeram continuar conversando todos os dias, agora pela Internet, até um novo encontro, dessa vez em casa de Adalberto, que jurou procurar um médico assim que chegasse, insistência de Beatriz, e quando ele desapareceu no longo corredor da área restrita aos que embarcavam, Beatriz sentou-se no banco de sempre e, invisível, voltou a observar as pessoas que iam e vinham, em transe, como gostava de dizer, e se divertiu.

            Jurandir esperava pelo amigo no local combinado, Salve salve Adalberto!, vivinho da silva com a ajuda de Deus, me conte como foi a viagem, Foi perfeita, Jurandir, conheci o mar e um oceano de emoções, mais tarde lhe conto, agora vamos para casa, depois de pegar o Camões que se encontra hospedado naquele hotel de cachorros, vamos vamos vamos...