“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
F. Pessoa
O poeta publica em seu blog poema intitulado Castigo, e me causa forte impressão, embora se trate de apenas quatro versos curtos. Reproduzo-o aqui:
“A velhice é um castigo
que vem pelo pensamento:
de se carregar consigo,
sempre, um arrependimento...”
Pelas limitações físicas e mentais que acarreta, a velhice pode mesmo ser tomada como um castigo. Se há doença então, esta impressão se torna ainda mais forte. Mas não é bem a velhice que o poeta deseja destacar; ele afirma que ela sempre carrega consigo um “arrependimento”. Eis que surge o epicentro do poema!
O mesmo poeta em outra ocasião (Cinismo), ao afirmar que o Homem desconhece o que há diante de si, escreve:
“...
vai
decide
escolhe
age
às cegas
és livre para não saber
assim o mundo
assim a vida
resta o cínico consolo do arrependimento”
Agora, o arrependimento converte-se em consolo, porém cínico consolo.
Em outra circunstância (Folhas), com dois versos que comovem pela simplicidade, o poeta registra sentimento bem diverso do arrependimento, o da plena consciência, perante a vida, do que é possível:
“...
a vida passou
eu fiz o que pude”
Faço uso da expressão “outra circunstância” para mostrar que os sentimentos variam com o passar do tempo, podem mudar completamente, e o poeta os exprime em função do momento em que vive e sente e pensa. Nada de errado com isso. O poeta utiliza-se de sua arte para buscar novos significados aos sentimentos e emoções que movem sua poesia. (Além do que, não nos esqueçamos, o poeta é um fingidor...)
Voltemos pois ao momento da primeira quadra, aquela que me tocou de imediato, e que afirma que a velhice carrega o peso do arrependimento. Não sinto assim. Não penso que isso deva ser necessariamente assim. Especialmente se eu fiz o que pude, levando em conta as circunstâncias, sempre. É preciso exercitar a humildade para admitir o rol de erros cometidos ao longo de uma vida, e que se acumulam tanto mais entramos na velhice. Poderia ser de outra maneira? Pelo menos no meu caso, não. Tais imperfeições são inerentes a minha constituição, primitiva, selvagem, bruta, de besta-fera, que carrega genes de neandertais e de seres ainda mais ancestrais. (Você é um neandertal!, exclama minha mulher, que me conhece bem.)
De minha parte, parece arrogância dizer que me arrependo, se tão somente fiz o que pude. Penso que, o que chamei de epicentro do poema está escondido por trás da palavra arrependimento, capciosamente oculto, como é da natureza desse sentimento. CULPA é a palavra certa.
O poeta reconhece que o arrependimento é apenas um “cínico consolo”, porque a culpa nunca deixa de atormentar. A culpa, no subterrâneo, constrói o calabouço do permanente martírio – alguns chegam mesmo a se flagelar, a aplicar o necessário e indispensável castigo. A dor das feridas do corpo é menor que a dor da alma. A angústia recorrente que ela provoca constitui espécie de flagelo mental que machuca, imobiliza, aprisiona, a vítima anda em círculos e não encontra saída.
Se não preciso me arrepender, por outro lado não posso deixar de reconhecer incontáveis erros e delitos por mim cometidos ao longo da vida. Devo procurar não os repetir, incansavelmente, porém certo de que os repetirei: é da minha natureza. Esta posição é bastante desconfortável, ao contrário do que alguns poderiam pensar, ao me tachar de irresponsável, insensível, um psicótico que não sente culpa. Porém, a culpa não redime, os erros já foram cometidos, novos erros serão cometidos, e nada sabemos da memória que restará após nossa passagem por este planeta. O certo é que passaremos.
Enquanto permaneço vivo, sou grato ao poeta que me faz pensar, mesmo diante de uma simples trova, cheia de mistério.