Aldemir
Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva, aos 60 anos de idade não poderia se queixar
da vida, até o fatídico episódio ocorrido há 6 meses. Ao longo de toda a sua
existência, ele que nascera em berço de ouro e sempre vivera na abundância,
desde a mais primitiva infância, queixava-se apenas de um ínfimo detalhe, uma
peça do destino, ínfimo para os outros, que para ele aquilo constituía-se numa
mancha, numa nódoa, numa mágoa indelével, pois que ao carregar um nome tão pomposo,
aristocrático, quase monárquico, que haveria de diferenciar-lhe dos simples mortais,
que tivesse também de carregar o Silva como último sobrenome. Silva!, coisa de
pobre, da classe baixa. O que mais o incomodava era o “da” Silva. Por que “da”
Silva?, perguntava-se. Se fosse apenas Silva, vá lá; mas da Silva! Felizmente, pouca gente
sabia deste último sobrenome, que constava dos documentos oficiais de
identidade, passaporte, certidão de casamento, documentos relativos a negócios. Aldemir assinava apenas Aldemir
Vasconcelos e Albuquerque Prado.
A vida de um milionário nada tem a
acrescentar à literatura universal. Ele é herdeiro do nome e sobrenome, é
educado em Oxford, Sorbonne ou Harvard, mora numa mansão, tem um iate e um
apartamento em Paris, é simplesmente um herdeiro.
Não passa disso. De modo que vamos saltar seus 59 anos e meio de existência
medíocre, e passemos ao referido episódio ocorrido há 6 meses.
Aldemir Vasconcelos e Albuquerque
Prado da Silva sofreu um grave acidente vascular cerebral e graças ao
atendimento médico de excelência, não morreu: ficou tetraplégico, preso a uma
cadeira de rodas, capaz de mover o dedo mínimo esquerdo com muita dificuldade.
Com sérios problemas na fala, utilizava-se de um computador capaz de emitir
sons agudos, metálicos, secos, semelhantes à voz humana, compreensíveis enfim.
A vida para ele perdera o sentido,
inconformado com aquela perda de autonomia. Perda perda perda, era só no que
pensava, já que permanecia completamente lúcido. Nada mais o mantinha ligado à
vida, as pessoas já não o interessavam, muito menos a política, o país, o
mundo.
Resolveu suicidar-se.
De que maneira suicidar-se quando se
perde a autonomia, a capacidade de ir e vir? Aldemir lembrou-se de Albert Camus
e seu enunciado sobre o suicídio, o único problema filosófico realmente
importante. Mas Camus não tratou do “como” suicidar-se, revoltava-se Aldemir,
imóvel em sua cadeira de rodas.
Além do que havia a cuidadora, ou melhor
dizendo, as inúmeras cuidadoras, 24 horas do dia ao seu lado, cuidando cuidando
cuidando, dirigindo a cadeira de rodas para lá e para cá, solícitas ao extremo,
alimentando-o nas horas marcadas com uma comida sem gosto, e o faziam não por
amor a ele, mas preocupadas em desempenhar a contento suas funções
profissionais, para que pudessem receber os régios pagamentos ao final de cada
mês. Deus queira que ele nunca morra!, diziam elas secretamente.
Mas ele desejava morrer.
Difícil parar de respirar. Ou parar
de alimentar-se. Esses atos despertavam logo a comoção na família, que
redobrava os cuidados com o enfermo. Enfermo?
Que enfermo? Morto, isso sim, pensava Aldemir.
Até que ele pediu uma cadeira de
rodas motorizada! A família recebeu a ideia como uma manifestação de vontade de
viver, e a cadeira, de última geração, foi providenciada imediatamente.
Cumprida a primeira etapa do plano,
pensou Aldemir.
Agora, era lidar com Alcilene, a
cuidadora dos períodos matutinos. Zelosa ao extremo, Alcilene não desgrudava de
seu paciente, dedicava-lhe atenção exclusiva, antecipava as vontades dele, a
cuidadora perfeita. Uma chata, pensava Aldemir.
Com o dedo mínimo esquerdo ele
conseguia mover a cadeira para frente, somente para frente. A família
elogiava-o, via naquilo um enorme progresso rumo à recuperação total. Pelo
menos, era o que diziam ao paciente, que ouvia com indisfarçável impaciência.
Segunda etapa: convencer Alcilene a
deixá-lo na beira da piscina para o banho de sol matutino. Ela costumava
deixá-lo no gramado da mansão dos Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva,
sempre bem longe da piscina. A ordem vinha de Dona Leontina Henriques
Vasconcelos e Albuquerque Prado (mantivera o sobrenome de solteira por parte de
pai, Henriques, e suprimira o famigerado da Silva, por parte do marido), esposa
de Aldemir, aquela que cuidava de tudo e de todos, a que mandava na casa.
Depois de muita insistência, a voz metálica do computador batendo em
pedra dura, Alcilene concordou, passou a estacionar a cadeira nas pedras de
Pirenópolis que recobriam as margens da piscina. No primeiro dia em que a
cuidadora deixou-o só, apenas um instantinho para ir ao banheiro, Aldemir
pressionou a pequena alavanca com o dedo mínimo esquerdo, e SPLAAASSSH!,
a cadeira e seu ocupante precipitaram-se na água, a cadeira emborcada, por
cima, o ocupante por baixo, invisível, submerso pelo peso da própria cadeira,
água espirrando por todo lado, um deus nos acuda.
Acho que consegui, ainda teve tempo de pensar Aldemir, assim que
mergulhou na piscina, com um sorriso assustado na face, que ninguém viu. Mais
não pôde pensar, água entrando pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos, água sendo
engolida, até que Aldemir ouviu o ruído de alguma coisa caindo na água, em
seguida a cadeira sendo violentamente desvirada, o ocupante agora na superfície
e olhando para o céu azul, respirando ar em vez de engolir água, a cadeira sendo
conduzida para a borda da piscina, os gritos das cuidadoras e de Dona Leontina
que acorreram assustadíssimas, o choro convulso e histérico de Alcilene, um
pandemônio, enquanto todos ajudavam Onofre, o jardineiro que naquele exato
momento passava por perto, a retirar da água a cadeira e seu ocupante.
Falhou, pensou Aldemir. Esse filho da puta do Onofre precisava me
salvar da morte tão desejada? Outra peça do destino...
O banho de sol agora acontecia a quinhentos metros da piscina.
Alcilene, naturalmente, fora despedida. Aldemir Vasconcelos e Albuquerque Prado
da Silva tornou-se um homem ainda mais triste.
Morreu oito anos mais tarde, de outro devastador acidente vascular
cerebral, sem nunca mais ter feito qualquer alusão ao sobrenome da Silva.