sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Do garrote vil ao vil garrote da covid-19

 

Garrote vil era o nome de um instrumento de consumação de pena de morte na Espanha. Consistia em um torniquete de couro que garroteava o pescoço do condenado e  era apertado lentamente. Na ditadura franquista esse instrumento foi aprimorado e a tira de couro foi substituída por um anel de metal que era apertado por uma tarraxa que o carrasco torcia mais lentamente, dependendo de sua disposição de aumentar o sofrimento ou permitir uma morte mais rápida. Isso aconteceu na Espanha até a morte do General Franco e o advento da democracia espanhola.

No Brasil, este instrumento foi resgatado em Manaus, com uma aparência diferente, pela falta de oxigênio que possa garantir uma oxigenação adequada à vida das pessoas acometidas pela Covid 19 e em estado grave. Em Manaus, o carrasco são as autoridades que não se preocuparam com a vida alheia, muito menos com um sofrimento terrível, ao se ter uma asfixia lenta, gradativa e inexorável, que vai matando tão lentamente como o carrasco franquista que escolhia quem iria sofrer mais ou sofrer menos. 

Pois é! O Planeta inteiro sabia que isso poderia acontecer. O Planeta inteiro se preparou, menos o Brasil. Compete ao Poder Público Federal, leia-se Presidente e seus Ministros, a responsabilidade pela saúde e vida das pessoas nacionais brasileiras, não se trata de apenas uma necessidade humanística, mas de um imperativo constitucional. Está na Constituição Federal em seu “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (in verbis).

Quem instrumentaliza o Estado Brasileiro é o Presidente da República, da mesma forma que quem instrumentaliza o fazer cirurgia é o cirurgião. Nem adianta tentar culpar o anestesista ou quem quer que seja, a culpa será sempre daquele a quem é outorgada a prerrogativa do fazer, o domínio do fato.

A falta de oxigênio em Manaus exteriorizou a face mais cruel de uma governança sanitária desprovida de pudores, caracterizada por uma incompetência abissal, pois, na maioria das vezes, é depositada nas mãos de quem nem sabe muito bem o que é saúde e quais são os determinantes dela. São indicações de uma política de compadrio e de cumplicidade, na maioria dos casos, o que possibilita as iniquidades que se perpetuam diante dos olhos foscos por uma catarata moral dos tais representantes do povo que se aboletam nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativa e no Congresso Nacional, não para atender os anseios e necessidades do povo, mas para se manterem sobrenadando nas águas pútridas da politicalha brasileira. 

Enquanto em Manaus as câmaras de gás de Hitler são recuperadas, disfarçadas de UTI, os responsáveis pelo cumprimento do Artigo 196 da Constituição da República permanecem em silêncio de catedral sem missa ou de cemitérios a meia noite. 

Onde está o que se diz presidente desta república? E seu ministro da doença, que mesmo estando na cena do crime não identificou nenhum sinal de sangue, deve ser porque Covid 19 só sangra dentro do corpo e o sangue não é exteriorizado; a morte não ocorreu por bala de fuzil, mas por algo que o ministro nem sabe o que é, por ser portador de um obstáculo epistemológico que o impede de tomar consciência do fato.

Há um silêncio lá pelas bandas do Congresso Nacional, porque eles estão muitíssimo preocupados em eleger seus subalternos para comandar as duas casas do legislativo. Para eles, isso é infinitamente mais importante do que vidas humanas perdidas em sofrimento intenso e inimaginável. Espero que sejam garroteados e asfixiados pelos votos nas próximas eleições para, ao menos, sentirem um pouco do dissabor da derrota.

Há um terceiro e majestosos silêncio; o do Judiciário. Por onde andam os falastrões que se assumem como guardiões da liberdade? Mas de que serve a liberdade após uma morte em sofrimento atroz? Ao menos as almas dos falecidos encontrarão a paz no encontro com Deus!

Entretanto há um silêncio muito doloroso para mim, o silêncio da afasia dolosa do Conselho Federal de Medicina, encastelado em algum lugar desta República, escudados em uma ética literária, mas desprovida de veracidade, porque diante do cenário escandaloso e após cobrança pública de muitos médicos respeitados neste País, emitiram uma nota água com açúcar, um delírio do óbvio, como diria Nelson Rodrigues, falaram sobre o nada, pois tudo o que foi dito só demonstra uma cumplicidade obsequiosa.

Falta-me ar, sufocado pela impiedade de muitos agentes públicos, mal respiro. Suspiro incessantemente tentando entender o morticínio antecipadamente prevenido, mas simplesmente desconsiderado, catástrofe moral, mundialmente sem igual, enfim... falta o ar, falta o a... falta o ... falta... falt... fal... fa... f..... 

 

José Pedro Rodrigues Gonçalves (15/01/2021) 

Médico, meu colega de turma, aos 50 anos de formados pela UEG, hoje UERJ.

Um dia chegarei a Sagres - última leitura

 

“A despeito da minha triste rebeldia, atribuo formas disformes às migalhas de pão que se espalham sobre a mesa. Enquanto acato os produtos da terra, que são poucos na casa, como que vivo de farelos. Sem eles, contudo, não estaria aqui, nesta colina de Lisboa, uma das sete existentes, pela qual perambulo amparando-me nas paredes das casas para não tombar. Após deixar as terras do avô e instalar-me em Lisboa, em Sagres, e depois no mundo, aqui retornei. Quem sou sem as ruinas das urbes humanas e sem os pedaços da minha existência? Quem sou sem estas histórias, meus escombros?”

 

            O trecho pertence a Um dia chegarei a Sagres, o último livro de Nélida Piñon (Ed.Record, 2020). Desejo comentá-lo, porém não me sinto apto para tal. Quem poderia fazer a crítica desse livro hoje no Brasil? Uns poucos, estou certo disso. Eu então, quem sou eu? Nélida é uma acadêmica, premiadíssima, Embaixadora Ibero-Americana da Cultura. Falta-lhe apenas o Nobel de Literatura. Quem sabe?

            A pequena amostra acima nos permite indagações. “Atribuo formas disformes”: se eu escrevesse isso em meu blog, imediatamente meu irmão me enviaria mensagem, me corrigindo. “Acato os produtos da terra”: um novo sentido para o verbo acatar? “Como que vivo de farelos”: por quê não apenas Vivo de farelos, suprimindo o horrível como. “Ruinas das urbes humanas”, “meus escombros”: linguagem sofisticada, eis aqui minha principal indagação. Mas Nélida pode.

            O livro é escrito na primeira pessoa: “Nasci no século XIX, no norte de Portugal, e não sei o que significa ser parte desta nação. Que benefícios os reis, assentados no trono, de diversas linhagens, nos concederam além de agrilhoar o povo aos seus caprichos.”

            Quem fala é Mateus, filho de puta, de pai desconhecido, criado pelo avô, lavrador em pequeno povoado do Minho. O menino recebeu precária educação, a não ser por um certo professor que lhe incutiu fantasias a respeito do Infante D. Henrique, desbravador de mares sem fim. São essas as ferramentas de que Mateus dispõe: machado, enxada, arado, a mão calosa, o braço forte. E muita fantasia para relatar suas memórias, até chegar a Sagres.

            O filho de Joana, a puta, escreve como se fosse um erudito. Mais que isso, com estilo próprio, original, com direito a altas filosofias. Mas Nélida pode.

(É verdade, o escritor tem liberdade para escrever como bem desejar.)

A primeira passagem por Lisboa, vindo da aldeia onde nasceu, é apagada, nada acontece além da sofisticada linguagem. Até que Mateus, enfim, chega a Sagres! Aí surgem personagens curiosas, estranhas, pinçadas do gênero humano, cada qual destinada a representar certo papel na vida de Mateus: dono de hospedaria, a mulher avara do dono de hospedaria, uma obsessiva que cuida da sobrinha paralítica em cadeira-de-rodas, o alfarrabista que coleciona documentos históricos (cultor da verdade), e finalmente um africano dionisíaco.

O estilo da escrita permanece o mesmo, cultíssimo, as palavras escolhidas a dedo. Sai da boca de Mateus: “Eu sofria com o mistério que lhe emoldurava o rosto e o empalidecia, e nunca decifrava. Quantas vezes desviei a mirada sob a vigília da tia que nem por uma fração de tempo permitia-me pousar os olhos na sobrinha. No quarto, livre para sonhar, simulava ter próxima a esfinge de Leocádia.” (Esfinge ou efígie? Mas Nélida pode.)

Ainda Mateus, após ter adotado um cão apelidado Infante: “Passamos a ser três, nós dois e o avô. Uma matilha de humanos e bicho, iludidos com o ânimo do amor.” Bonito!

Arrasta-se a história, até que Mateus volta a Lisboa, um velho desvalido. Num ato de misericórdia, encontra Amélia, outra desvalida, originária do Oriente, e amparam-se mutuamente na pobreza extrema. O livro ganha em emoção – talvez pela primeira vez – com as palavras que Mateus dirige a Amélia, e que ela mal pode compreender. Parece que ele delira, e então conta sua verdadeira história.

Em minha minguada opinião, um bom livro.