Garrote vil era o nome de um instrumento de consumação de pena de morte na Espanha. Consistia em um torniquete de couro que garroteava o pescoço do condenado e era apertado lentamente. Na ditadura franquista esse instrumento foi aprimorado e a tira de couro foi substituída por um anel de metal que era apertado por uma tarraxa que o carrasco torcia mais lentamente, dependendo de sua disposição de aumentar o sofrimento ou permitir uma morte mais rápida. Isso aconteceu na Espanha até a morte do General Franco e o advento da democracia espanhola.
No Brasil, este instrumento foi resgatado em Manaus, com uma aparência diferente, pela falta de oxigênio que possa garantir uma oxigenação adequada à vida das pessoas acometidas pela Covid 19 e em estado grave. Em Manaus, o carrasco são as autoridades que não se preocuparam com a vida alheia, muito menos com um sofrimento terrível, ao se ter uma asfixia lenta, gradativa e inexorável, que vai matando tão lentamente como o carrasco franquista que escolhia quem iria sofrer mais ou sofrer menos.
Pois é! O Planeta inteiro sabia que isso poderia acontecer. O Planeta inteiro se preparou, menos o Brasil. Compete ao Poder Público Federal, leia-se Presidente e seus Ministros, a responsabilidade pela saúde e vida das pessoas nacionais brasileiras, não se trata de apenas uma necessidade humanística, mas de um imperativo constitucional. Está na Constituição Federal em seu “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (in verbis).
Quem instrumentaliza o Estado Brasileiro é o Presidente da República, da mesma forma que quem instrumentaliza o fazer cirurgia é o cirurgião. Nem adianta tentar culpar o anestesista ou quem quer que seja, a culpa será sempre daquele a quem é outorgada a prerrogativa do fazer, o domínio do fato.
A falta de oxigênio em Manaus exteriorizou a face mais cruel de uma governança sanitária desprovida de pudores, caracterizada por uma incompetência abissal, pois, na maioria das vezes, é depositada nas mãos de quem nem sabe muito bem o que é saúde e quais são os determinantes dela. São indicações de uma política de compadrio e de cumplicidade, na maioria dos casos, o que possibilita as iniquidades que se perpetuam diante dos olhos foscos por uma catarata moral dos tais representantes do povo que se aboletam nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativa e no Congresso Nacional, não para atender os anseios e necessidades do povo, mas para se manterem sobrenadando nas águas pútridas da politicalha brasileira.
Enquanto em Manaus as câmaras de gás de Hitler são recuperadas, disfarçadas de UTI, os responsáveis pelo cumprimento do Artigo 196 da Constituição da República permanecem em silêncio de catedral sem missa ou de cemitérios a meia noite.
Onde está o que se diz presidente desta república? E seu ministro da doença, que mesmo estando na cena do crime não identificou nenhum sinal de sangue, deve ser porque Covid 19 só sangra dentro do corpo e o sangue não é exteriorizado; a morte não ocorreu por bala de fuzil, mas por algo que o ministro nem sabe o que é, por ser portador de um obstáculo epistemológico que o impede de tomar consciência do fato.
Há um silêncio lá pelas bandas do Congresso Nacional, porque eles estão muitíssimo preocupados em eleger seus subalternos para comandar as duas casas do legislativo. Para eles, isso é infinitamente mais importante do que vidas humanas perdidas em sofrimento intenso e inimaginável. Espero que sejam garroteados e asfixiados pelos votos nas próximas eleições para, ao menos, sentirem um pouco do dissabor da derrota.
Há um terceiro e majestosos silêncio; o do Judiciário. Por onde andam os falastrões que se assumem como guardiões da liberdade? Mas de que serve a liberdade após uma morte em sofrimento atroz? Ao menos as almas dos falecidos encontrarão a paz no encontro com Deus!
Entretanto há um silêncio muito doloroso para mim, o silêncio da afasia dolosa do Conselho Federal de Medicina, encastelado em algum lugar desta República, escudados em uma ética literária, mas desprovida de veracidade, porque diante do cenário escandaloso e após cobrança pública de muitos médicos respeitados neste País, emitiram uma nota água com açúcar, um delírio do óbvio, como diria Nelson Rodrigues, falaram sobre o nada, pois tudo o que foi dito só demonstra uma cumplicidade obsequiosa.
Falta-me ar, sufocado pela impiedade de muitos agentes públicos, mal respiro. Suspiro incessantemente tentando entender o morticínio antecipadamente prevenido, mas simplesmente desconsiderado, catástrofe moral, mundialmente sem igual, enfim... falta o ar, falta o a... falta o ... falta... falt... fal... fa... f.....
José Pedro Rodrigues Gonçalves (15/01/2021)
Médico, meu colega de turma, aos 50 anos de formados pela UEG, hoje UERJ.