Seu nome completo, Serôdio Dias de Oliveira,
51, gaúcho de nascimento e coração; primava pela circunspecção e sobriedade,
qualidades que herdara em linhagem direta do avô e do pai. Por isso mesmo, apreciava
muito de seu primeiro nome: Serôdio, nome de macho.
Nunca
soube quem lhe dera o nome, nem perguntara. Intuía que só podia ser o próprio
pai, talvez inspirado pelo avô. Ambos eram homens cultíssimos, quando
comparados aos agricultores da Serra Gaúcha, onde Serôdio passara toda a sua
existência até então. Serôdio mesmo, não era homem de leituras, tinha o segundo
grau incompleto; preferia o cultivo de uvas e fabricação de vinho aos livros. A
vida me ensina tudo de que preciso, gostava de alardear, mostrando as mãos
rudes e calejadas.
Até que chegou o
inesperado dia de conhecer a cidade de São Paulo, digo inesperado porque este
nunca fora um desejo genuíno do nosso agricultor, apegado de carne e osso à
terra onde vivia. Também seria a primeira viagem de avião, uma aventura aos 51
anos de idade, para um solteirão carrancudo, solitário, sistemático, avesso a
imprevistos. A obrigação falou mais alto, era uma viagem de negócios, na
tentativa de vender melhor os seus vinhos, que de fato não eram maus, tinham
personalidade, vinhos de macho, ele gostava de dizer.
E a tal aventura teve
início súbito e mais que inesperado quando, já no embarque no avião, Serôdio
sentou-se ao lado de uma bela paulistana, pele alvíssima, cabelos e olhos
negros, que foi logo puxando conversa, dizendo-se portadora de “fobia de voar”.
Parecia culta a mulher, 45, formada em Filosofia pela USP, onde lecionava,
divorciada, vivida.
Na decolagem, posso
segurar sua mão, senhor...? Permita-me que me apresente, me chamo Letícia, tenho
pavor de avião, e o senhor? Serôdio Dias de Oliveira, às suas ordens. Bonito
nome! Quem lhe batizou? Não sei, talvez meu pai ou meu avô, que bom que gostou,
igualmente aprecio muito o meu nome. E o senhor sabe o que ele quer dizer? Não sei.
E o assunto ficou por terminar, assim achou mais prudente a professora, ocupada
mesmo naquele momento com a decolagem, o suor frio escorrendo pelo pescoço bem
torneado.
A não ser pelas fortes
turbulências ao sobrevoarem Santa Catarina, quando Letícia novamente agarrou-se
nas mãos de Serôdio, a viagem transcorreu agradável, conversa animada entre
ambos, O que o senhor vai fazer em São Paulo?, Já conhece a cidade?, Gostaria
de mostrar-lhe alguns pontos turísticos, o Colégio dos jesuítas, a Avenida
Paulista, quem sabe entramos no Masp, conhece? Serôdio não conhecia nada e
aceitou entusiasmado a oferta caída do céu. Mais uma turbulência sobre o Paraná
e Letícia mais agarrada...
A semana paulistana foi
maravilhosa! Serôdio fechou negócios vantajosos, conheceu a Capital ciceroneado
pela competência de quem nasceu na cidade e lá viveu 45 anos, mulher
interessada em cultura, bem educada. Foram a teatros, museus, cinemas, comeram
em bons restaurantes. E Serôdio levou Letícia para a cama.
No dia seguinte voltaria a
Serra Gaúcha; foi quando lhe bateu uma melancolia atroz. No fundo, desejava que
aquela relação perdurasse, quem sabe um namoro mais prolongado, depois o
noivado, e daí para o casório seria um pulo. Com muito cuidado para não
espantar a caça, Serôdio insinuou tais ideias à moça. Ela ouvia calada, o olhar
distante, cheia de incertezas. Também gostara daqueles dias em que flanaram por
São Paulo, junto daquele homem simples, rude e bom. Afeiçoara-se a ele, talvez ainda
não fosse o amor. Além do que havia um sério problema, aquele nome. Serôdio!
Letícia precisou ir ao dicionário, para inteirar-se do significado da palavra.
Serôdio, vou ser franca
com você. É o seu nome! Não é um nome próprio...
Nosso gaúcho,
magoadíssimo, não compreendeu aquelas frases curtas e diretas como um murro na testa.
Por que não era próprio o seu nome? Por acaso Letícia era próprio? Abespinhou-se,
amarrou a cara, no dia seguinte voltou para o Rio Grande. Catrâmbias!, foi só o
que disse.
(Caro
e paciente leitor, essa história bem que poderia terminar por aqui. Quem já conhece
o significado da palavra serôdio saberia do que Letícia estava falando, ao afirmar
que aquele não era um nome próprio. Quem não conhece, provavelmente irá ao
Houaiss e matará a charada. Fim de caso.
Porém,
nesta altura dos acontecimentos, o autor já não é mais o dono da história, ela
adquiriu vida própria, quem escreve ficção sabe disso perfeitamente e por
experiência própria, as ideias continuam fervilhando dentro da cabeça do autor,
teimosas, impertinentes, a exigir que venham à luz, e o autor precisa obedecer.
Talvez seja esta uma espécie de loucura mansa dos que sofrem da mania de
escrever. Melhor obedecer.)
Ao
chegar em casa, Serôdio foi direto ao pai, com o interrogatório pronto e um
indisfarçável sentimento de raiva. Pai, me diga, quem me botou este maldito
nome? O pai, passado dos 80, não se lembrava bem da história, e pediu ao filho
que fosse perguntar ao Domingos, velho capataz aposentado, português de
nascimento, e que conservava até hoje uma linguagem tipicamente lusitana, às
vezes difícil de ser compreendida, a despeito dos seus 60 anos de vida no
Brasil, ele que viera para cá fugido do alistamento militar no exército de
Salazar. Diga, Domingos, quem me botou esse nome?
Ora
pois pois, faz tempo isso, patrão, mas me lembro bem. Seu pai, ocupado com a
vindima, pediu-me que levasse você à cidade para o registro no cartório, 10
dias depois de nascido. Fomos eu, minha mulher Maria e você, de charrete,
debaixo de chuvinha miúda, cerração pesada, um frio do caralho. Seu pai
recomendou-me que lhe desse o nome de Sinfrônio, agora me lembro bem, nunca
mais esqueci, mas na hora do registro não houve o que me fizesse lembrar de
nome tão horroroso, o nome de seu bisavô. Dito está, ora pois. Ocorreu-me então
que lá em Portugal, quando um menino nascia fora de tempo, temporão como se diz
também por aqui, o que aconteceu com você que nasceu 10 anos depois de seu irmão
mais velho, dizemos que ele é serôdio. Eu e Maria aprovamos a troca, o cartorista
nada acrescentou, ficou Serôdio. Na roça, todos gostaram, nome de macho,
disseram. Graças a Deus, você também gostou!
Serôdio
ouviu com profundo respeito o relato do velho português. Seus pensamentos
voaram para junto de Letícia. Quem sabe agora, que ele conhecia a origem e o
significado da palavra – e a história não era de todo má, tinha sua pitada de
poesia –, ela já não daria tanta importância ao nome? Encontrou o número do
telefone anotado num guardanapo de bar, ligou imediatamente, o coração a sair
pela boca.
Uma
voz metálica respondeu: este número de telefone não existe.
Catrâmbias!,
a vida me ensina tudo de que preciso e, às vezes, até do que não preciso.