domingo, 4 de abril de 2021

Crônica da Sexta-Feira da Paixão

 

Retrato do Pe. José Maurício

pintado por seu filho José Maurício Jr

 

 

Por que nutro profundo respeito pela Igreja Católica? Por seu papel primordial no desenvolvimento das artes, da pintura, arquitetura, escultura e, em especial, da música. Tal sentimento me acompanha desde a infância.

            Fomos criados, eu e meus irmãos, em uma família espírita. Minha mãe, formada professora primária, professava o catolicismo até casar-se com meu pai; converteu-se ao Espiritismo pela via mais improvável, mas esta é outra história. A despeito disso, me lembro bem quando ela me convidou para assistir a procissão da Sexta-feira da Paixão. Eu menino com dez anos, ela conseguiu me atiçar a curiosidade, com dois fortes argumentos:

            – Você vai gostar das músicas cantadas, há uma cantora daqui da cidade com voz lindíssima. E vai conhecer o som da matraca!

            Matraca? Matraca não é uma mulher que fala pelos cotovelos?, pensei eu.

            Não acompanhamos a procissão. Minha mãe escolheu um bom lugar em rua por onde o cortejo passaria e esperamos algum tempo; era noite fechada, o local pouco iluminado, o clima solene, quase lúgubre; a procissão passou, impressionante o andor carregado por seis homens, a imagem recoberta por um pano roxo, me lembro bem depois de mais de 60 anos.

Gostei muito da cantoria, solene imponente majestosa emocionante, a tocar definitivamente a alma do menino. Adorei a matraca, pápápápápápá, embora tenha achado o som muito parecido com aquele produzido pelo homem-do-bijú, tipo de biscoitinho muito popular naquela época, vendido por ambulantes que carregavam às costas um volumoso cilindro de metal com os quitutes.

            Durante toda a Semana Santa as rádios da cidade tocavam apenas música sacra, em sinal de respeito; talvez pouca gente ainda saiba disso. Eu ouvia aquelas músicas e gostava. Ainda gosto, ouço música sacra desde então, não apenas na Sexta-Feira da Paixão; com assiduidade ouço o Réquiem de Mozart, minha preferida, aos sábados pela manhã. (Certa vez ouvi de um amigo, Por que você gosta dessa música tão triste? Sinto-a solene imponente majestosa emocionante, tudo menos triste, respondi.)

            Aprendi com minha mãe a gostar também da música sacra brasileira, ao ouvi-la enaltecer Padre José Maurício, “reconhecido internacionalmente”, segundo ela. José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 1767-1830) foi um padre católico, professor de música, maestro e compositor, mulato, descendente de escravos, que nasceu pobre, mas recebeu sólida educação em música, letras e humanidades. Foi nomeado mestre de capela da Catedral do Rio de Janeiro no final do século XVIII, tendo caído nas graças do príncipe-regente dom João, grande admirador de seu talento, indicando-o diretor da Capela Real e fazendo-o cavaleiro da Ordem de Cristo. Minha mãe sabia disso tudo.

            A Missa de N. Sra. da Conceição, de José Maurício, foi gravada pela Orquestra Sinfônica Brasileira e Coro Sinfônico do Rio de Janeiro, sob regência de Roberto Minczuk; é das mais lindas que já ouvi.

            Assim é que, ainda hoje, a Sexta-feira da Paixão não é para mim um dia triste.