sexta-feira, 22 de junho de 2012

O mito do vaso partido[1]


“O mito é o nada que é tudo.”
                            Fernando Pessoa 
      
            O mito surge na ordem do simbólico. Diferentes povos e culturas, antes mesmo dos gregos e seus deuses, habitantes do Olimpo, cultivam, transformam, recriam, atualizam sua própria mitologia. Os mitos, grosso modo, apresentam duas funções básicas: em primeiro lugar, responder a questões que o homem formula desde a aurora de sua infância (de onde viemos?, para onde vamos?, por exemplo); em segundo lugar, justificar e dar sentido a rituais e costumes incorporados pelas diferentes culturas, ao longo de milênios (Graves, 1986).
            Bion (s/d,a) afirma que “não podemos dizer como os mitos começaram, nem somos capazes de observar o processo de formação de mitos dentro de nós, caso exista algum.” Porém, ele ressalta a importância do símbolo pictórico, a partir do qual o mito é formado e “estocado”, para ser então utilizado de acordo com as circunstâncias e necessidades (Bion, 1959). Tais necessidades e circunstâncias surgem a todo momento no exercício da clínica, e se a dupla analítica pode identificar o uso que se está fazendo do mito, então ambos podem pensar sobre ele e ver como os personagens desenvolvem-se, e, às vezes, passam a reger suas vidas.

O mito

            Eis um mito que, de tanto repetir-se, passado de geração a geração até os dias de hoje, para muitas pessoas ganhou foro de verdade: “Uma vez quebrado um vaso (de cristal), ele nunca mais será o mesmo”. Parece que ele se aplica, por aqueles que o tomam como verdade e destinação – e é evidente que então, para tais pessoas, não se trata de mito –, a duas situações bem definidas, ambas ligadas à relação com o outro: as amizades e as relações amorosas.
            Antes de mais nada, é preciso admitir que a expressão “vaso quebrado” é forte, expressiva, bastante significativa, poderosa até, em virtude de sua contundente concretude: um vaso é um vaso. A importância do símbolo pictórico torna-se agora uma evidência. Não raro, acrescenta-se a esta expressão o material do qual o vaso é constituído, o cristal, algo definitivamente irreparável quando danificado. O símbolo torna-se cristalino e ainda mais verdadeiro.

Três situações clínicas

            O primeiro tipo de relato que se pode observar com frequência na prática clínica é aquele em que o paciente A, ao falar do doloroso rompimento de uma relação amorosa, ouve do ex-parceiro que “o vaso já não pode ser reparado...” Porque ainda ama, A está disposto a perdoar, a reconstruir a relação, porém, diante de argumento tão poderoso – o mito com força de verdade – ele não é capaz de pensar alternativas, sofre ainda mais, sem ao menos dar-se conta da razão deste sofrimento adicional, acredita mesmo que não há possibilidade de reparar o que foi danificado. Ambos, paciente e ex-companheiro tornam-se vítimas do mito do vaso partido, presos em uma armadilha que não permite qualquer pensamento criativo.
            Na segunda situação clínica, o paciente B crê, ele mesmo, que de fato o vaso partido não pode ser consertado. Agora é o outro que pode estar disposto a reconstruir a relação, porque ainda ama, mas B já não investe nesta possibilidade. Em uma situação invertida, ambos caem na mesma armadilha referida acima, sem que possam dar-se conta (ter consciência emocional) da diferença entre a concretude do vaso quebrado e a plasticidade subjetiva da mente como recurso psíquico a ser utilizado.
            Experiência emocional semelhante ocorre quando, ao término de uma forte, antiga, importante relação de amizade, o paciente C, que se sente desiludido, traído, enganado, em virtude de alguma atitude que ele considera irreparável, faz uso do mesmo mito. Em tais situações, pela mágoa e ressentimento remanescentes, a relação é definitivamente rompida, perde-se o amigo, finda uma amizade, com graus variáveis de dor psíquica de ambas as partes.
            Bion (s/d,b) ressalta que “existem situações que são sentidas como problemas sem solução, ou sentidas como problemas para os quais não se pode achar nenhuma solução com o equipamento disponível para o indivíduo que as esteja experimentando. Tais situações não são absolutas: podem ser razoavelmente comuns e de curta duração, mas se este tipo de experiência perdura, acaba se tornando um problema que faz exigências ao equipamento de inteligência e à personalidade do indivíduo.” Não poderíamos associar tais formulações de Bion aos mitos que ganham força de verdade?
           
Onipotência de pensamento

            Quando o mito adquire força de verdade, apenas nossa capacidade (humana) de pensar a experiência emocional pode fazer frente a ele, desmitificando-o. A impossibilidade de reconstituir algo que se quebra em nossa mente faz supor que somos infalíveis; e se porventura erramos, que não há remédio para nossos erros. Trata-se da onipotência de pensamento, uma das características marcantes do psiquismo infantil, ainda em desenvolvimento.
            Em Totem e tabu, ao descrever os efeitos do animismo, magia e onipotência de pensamentos, Freud (1913) assinala: “Assim, vê-se que a onipotência de pensamentos, a supervalorização dos processos mentais em comparação com a realidade, desempenha um papel irrestrito na vida emocional dos pacientes neuróticos e em tudo que dela se deriva.” O grifo é meu: supervalorizar o processo mental em detrimento da realidade pode ser comparado à função do mito que adquire força de verdade. Acredita-se mais no valor do símbolo pictórico do vaso partido do que na realidade psíquica, subjetiva, capaz de reparação.
            Bion (1991), em Learning from experience, torna mais clara esta ideia, ao acrescentar os conceitos de elementos alfa e beta: “Ao contrário dos elementos-alfa, os elementos-beta não se experimentam como fenômenos, mas como coisas-em-si. As emoções são, de igual modo, objetos sensíveis.” Mais adiante, ele prossegue: “Os elementos-beta não se utilizam como pensamentos oníricos, mas são passíveis de uso na identificação projetiva. Têm importância para produzir atuações. São objetos a evacuar ou usar para determinado tipo de pensar que depende do manipular coisas-em-si quando manipular substitui palavras ou idéias, por ausência de representação mental e poder de abstração.”
            Pois parece constituir-se o fenômeno ao qual estamos denominando de mito do vaso partido: ausência de representação mental e incapacidade de abstração geram um certo tipo de “pensar” onde idéias  ou palavras são tomadas como coisas-em-si. Tão somente quando a experiência emocional do paciente pode ser transformada em elementos-alfa é que adquire a capacidade de sonhar.
            Não cabe no presente trabalho elaborar conceitos já bem estabelecidos, como os da alternância entre as posições esquizo-paranóide e depressiva, a tolerância para com a “interação contínua e dinâmica” entre ambas (Bion, s/d, c). Porém, nas situações clínicas acima descritas, quando o paciente A fica convencido de que o argumento apresentado pelo outro (o irrecuperável vaso partido) é de fato irrefutável – e deprime-se com isso –, entenda-se que ambos permanecem em PS, sem a possibilidade de atingir PD.
           
Amor e ódio

Em oposição a estes estados de onipotência e onisciência, equivocar-se é o natural, sendo também natural que haja recursos para reparação; de outro modo, a vida (de relação) nos seria insuportável, eivada de permanente culpa.
            O ódio, em especial aos objetos internos, parece constituir-se no maior obstáculo à possibilidade de reparação. Já o amor, ao contrário, tem efeito reparador, por sua natureza mesma (Klein, 1937a). Não se trata aqui do amor “religioso”, piegas, moralista, narcísico, mas de um sentimento incrivelmente forte, que não se sabe exatamente de onde vem, quando e como surge no ser humano. Segundo Klein (1937b), trata-se da “mais complexa de todas as emoções humanas: aquilo que chamamos de amor”.
            O ódio pode gerar outro sentimento, complexo, que se insere no mito em questão e em suas repercussões clínicas: o sentimento de culpa inconsciente. Ainda segundo Klein (1937c), “esse sentimento surge do medo inconsciente de ser incapaz de amar os outros de verdade ou de forma suficiente e, principalmente, de não conseguir dominar seus próprios impulsos agressivos: essas pessoas têm medo de ser um perigo para aquele que amam”. Além da culpa pelo vaso partido, pode-se supor o surgimento do medo de que, se restaurado, o vaso possa quebrar-se novamente. A elaboração da culpa depressiva e a consequente reparação não oferecem garantias de infalibilidade.
            Pode-se denominar de não-mito, ou a verdade possível, o fato de que, diante do “vaso quebrado” possa surgir oportunidade única para crescimento psíquico, de tolerância a nós mesmos e à nossa natureza, a possibilidade de enfrentar a falibilidade, fragilidade, o não-saber enfim, próprios do homem. E reconhecer a condição humana: apenas uma partícula nesse vastíssimo universo incompreensível e misterioso. A frase de Schwarz-Bart (1980), em seu livro O último dos justos, de força estético-literária imbatível, resume a ideia: “Nossos olhos recebem a luz das estrelas mortas.”
            O embate entre o mito e a verdade possível representa a peleja constante entre a necessidade de saber e a dificuldade de permanecer na ignorância. É a necessidade de saber que gera o mito. Porém, esta mesma necessidade pode também gerar ódio, diante do fato inquestionável de que nada sabemos; permanecer na ignorância, a aceitação desta condição, pode gerar o sentimento amoroso da tolerância (aos objetos externos e internos, especialmente a estes últimos). 
            E o que o homem pode fazer diante da verdade possível, inspirada pelo sentimento amoroso? Quando um vaso (concreto) de pedra, barro ou cristal se quebra, o homem constrói um novo vaso. Os cacos daquele que se quebrou viram objeto da arqueologia, têm sua importância, mesmo na condição de cacos. Por analogia, e apenas por analogia, diante da subjetividade de nossa mente, pode-se pensar que assim vão se transformando nossas experiências emocionais ao longo da vida: ao refazê-las a cada novo dia, tem-se a oportunidade de aprender com elas, de crescer a partir delas. Aquilo que se quebra em nosso espírito pode então ser transformado.
            E o que o psicanalista pode fazer diante do mito trazido por seu paciente? A preocupação constante e permanente de Bion (s/d,d) para com o analista não poderia faltar nas situações clínicas apresentadas no presente trabalho: “o analista poderia ter à sua disposição certos mitos, como o cientista tem certos procedimentos matemáticos; poderia, com frequência produzir as suas associações livres a esses mitos, de modo a ficar familiarizado com os mitos e com seu uso; então, poderia aprender a detectar, a partir do material de seu paciente, qual o mito apropriado e, a partir daí, qual é a interpretação apropriada. Então, uma forma do analista praticar seu ofício, mantendo-se treinado para seu trabalho, seria a de associar livremente aos mitos que escolhesse.”
Caberá aos analisandos introjetarem a colaboração criativa do analista, do mesmo modo que o leitor pode tirar proveito da elaboração estético-artística do poeta. Antony Burgess (2008), em seu livro sobre literatura inglesa, cita Richard Lovelace (1618-1658) como legítimo representante da poesia galante e cavalheiresca do século XVII, e que oferece já um bom exemplo da diferença entre concretude e subjetividade, nas relações amorosas:

            Stone walls do not a prision make,
                        Not iron bars a cage;
            Minds innocent and quiet take
                        That for an hermitage;
            If I have freedom in my love
                        And in my soul am free,
            Angels alone, that soar above,
                        Enjoy such liberty.[2]

Conclusão

            As experiências vividas fazem parte da nossa arqueologia psíquica, têm seu valor, mas são passado diante do novo dia. O que se tem a perder diante do novo dia, que nunca se sabe como vai ser? Ora escolhe-se o ódio, o que há de dificultar, senão impossibilitar a reparação – o mito do vaso partido; ora escolhe-se o amor, que haverá de reconstruir nossa realidade psíquica, permitindo viver-se um novo dia. A escolha é sempre de cada um: mito e verdade, ódio e amor, ambos presentes e em graus variáveis, a influenciar decisivamente todas as relações humanas.

Referências bibliográficas
Bion, W.R.. Torre de Babel: possibilidade de usar um mito racial (s/d-a). In: Cogitações. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p.234-235.
Idem. O sonho (1959). In: Cogitações. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p. 59.
Idem. Torre de Babel: possibilidade de usar um mito racial (s/d,b). In: Cogitações. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p.242.
Idem. O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991, p.25-26.
Idem (s/d,c). In: Cogitações. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p.208.
Burgess, A. A literatura inglesa. São Paulo: Ed. Ática, 2008, p. 128-129.
Freud, S. Totem e tabu. In: Obras psicológicas completas de S. Freud, Edição standard brasileira, vol. XIIl . Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996, p.97.
Graves, R. Introduction of New Larrousse encyclopedia of mythology. Londres: Hamlyn Publishing, 1986, p.V.
Klein, M. Amor, culpa e reparação (1937a). In: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996, p.354.
Idem. (1937b), p.347.
Idem. (1937c), p.350.
Pessoa, F. Ulisses. In: Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.23.
Schwarz-Bart, A.. O último dos justos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p.9.



[1] Versão resumida deste trabalho, destinada ao público leigo, foi publicada com este mesmo título no jornal Correio Brasiliense em 10/10/2009.
[2] Muros de pedra não fazem uma prisão,/ Nem grades de ferro uma jaula;/ Mentes inocentes e tranquilas/ Fazem delas um refúgio;/ Se eu tenho liberdade em meu amor/ E em minha alma sou livre,/ Só os anjos, que planam lá no alto/ Gozam de tanta independência. (Tradução de Duda Machado.)

Terror sem nome


Ao discorrer sobre o sonho, em Cogitações (1959), Bion assinala: “Tanto o superego social como o individual contribuem, em função de seu terrorismo, para a necessidade de o paciente fazer ataques destrutivos ao mecanismo onírico. Quando isso acontece na sessão, o paciente mostra ter medo de estar morto ou de ter perdido a consciência, pois o sonho é aquilo que torna disponível, como parte da personalidade, tanto os eventos da realidade emocional externa como os eventos da realidade psíquica interna pré-verbal. Se a capacidade para o trabalho onírico é destruída, o paciente sente um temor particularmente aterrorizador, porque não tem nome, e porque a própria qualidade de ausência de nome deriva da destruição da capacidade do paciente para o trabalho onírico, que é o mecanismo responsável pelo nomear.”

Kafka nutria gosto especial pela narrativa breve (contos, novelas, aforismos, parábolas, minicontos), forma que talvez supere em importância literária os chamados grandes romances. Ainda nas páginas dos Diários encontramos algo genuinamente kafkiano, datado de 1922, que poderíamos denominar um miniconto: Duas crianças, sozinhas no apartamento, entraram numa grande mala, a tampa fechou-se, não a conseguiram abrir e morreram asfixiadas.
Sob a perspectiva psicanalítica, essa curtíssima narrativa poderia ser considerada um sonho de vigília. Ou poderia surgir em uma de nossas sessões, trazida pelo paciente como um sonho de fato. Afinal, Kafka e inúmeros outros autores descrevem em suas obras a fenomenologia do suceder psíquico que Freud observava em seu consultório.
Um fato real nos foi relatado por uma colega: “Pela manhã, li seu trabalho sobre Kafka e a Psicanálise. Para surpresa minha, à tarde, uma paciente me contou durante uma sessão, muito angustiada, que quando criança, em uma brincadeira, havia ficado presa em uma mala.”
       Agora, o que podemos pensar sobre isso? Ficção ou realidade?   Quando nos deparamos com este miniconto, por associação livre, o tema que nos surge à mente é aquele que Bion denominou de “terror sem nome”. Ora, Literatura também é trabalho onírico, e Kafka parece que sabia disso. O que é a obra literária senão um “sonho de vigília”, em que o autor apreende a intimidade da alma humana? O que é a criação senão o resultado da ação da “função alfa”, traduzindo em metáforas, contos, histórias e modelos o sofrimento humano transformado em pensamento literário?
     Voltemos ao uso que o psicanalista pode fazer da Literatura. Diante do miniconto de Kafka, em associação com a experiência relatada pela colega, podemos pensar no analista e analisando vivendo um impasse – presos em uma mala – até a morte (interrupção da análise). Ao tomar consciência desta situação, ambos podem fazer alguma coisa por eles mesmos e pelo processo analítico.

Boa sorte lá dentro


A paciente com quem trabalho há anos entra em meu consultório e exclama:
- O que foi que você disse ao rapaz que acaba de sair que o deixou tão assustado, a ponto dele me dizer Boa sorte lá dentro?
De fato, o rapaz saiu assustado, porém, o que apenas eu e ele podemos saber é que ele já entrou muito assustado. Ambos ainda desconhecemos as razões para tal estado de espírito, e é assim que muitos pacientes chegam para iniciar um trabalho de análise.
A paciente que chegava em seguida atribuiu ao analista a causa do susto, é dela esta fantasia, mas posso assegurar que qualquer profissional razoavelmente bem treinado jamais seria tão inábil, tão invasivo, tão afoito em realizar interpretações precipitadas, para gerar tamanha ansiedade naquele que inicia uma análise.
O que será que assusta tanto as pessoas, que fantasias trazem dentro de si que fazem com que o ato de buscar ajuda para um problema de ordem psíquica se transforme em algo tão aterrorizante? Não é difícil para a maioria das pessoas procurar um médico por causa de uma dor de barriga, porém quando se trata da mente, a conversa é bem diferente.

Psicanálise e o processo criativo


Sempre que vemos alguém a quem muito admiramos pronunciar-se de forma visceralmente discordante de nós, isso nos causa alguma estranheza, desconcerto, desconforto mesmo. Aconteceu comigo, ao ler em Kafka: “Não é um prazer ocuparmo-nos com a psicanálise e mantenho-me tão afastado dela quanto possível...” (Meditações, Guimarães Ed., 1997). E em José Saramago: “A última coisa que faria neste mundo seria psicanalisar-me.” (As palavras de Saramago, Companhia das Letras, 2010).
         Dois gênios da literatura – por quem nutro sentimento de quase  veneração –, o mesmo ponto de vista sobre a psicanálise, exposto de forma enfática e definitiva, e a minha mais profunda discordância deles, nesse aspecto. Quem sou eu para discordar destes gigantes?, é a interrogação que de imediato me vem à mente. Mas outras ideias afloram em seguida, outras possibilidades, resultado não de conhecimento teórico ou de leituras e especulações filosóficas, e sim de aprendizado adquirido a partir da experiência pessoal de ser analisado.
Gosto de pensar que aquilo que o processo de análise pode nos proporcionar de melhor é uma vida mais confortável. Podemos supor que o escritor retire de seu mais profundo desconforto perante a vida a matéria bruta para sua escrita criativa. Remover, portanto, este desconforto seria o mesmo que secar a fonte da criatividade? Tal receio, por hipótese (mesmo que de origem inconsciente), não pode ser afastado; esta ideia há muito tem sido ventilada por analistas e não analistas, ao discutirem a conveniência ou não conveniência de escritores criativos, ou artistas de um modo geral, submeterem-se à psicanálise.
Eis a questão apresentada de outra maneira: é preciso viver desconfortavelmente para que se possa manter vivo o processo criativo? (A esta altura, o leitor há de ter percebido que evito as palavras “felicidade” e “infelicidade”, demasiadamente gastas para exprimir certos estados de espírito, substituindo-as por “conforto” e “desconforto”, estas mais modestas, mais comedidas, mais realistas.) Este é o preço que se tem de pagar para preservar a capacidade criativa? Não será um preço alto demais? Bem, cada um sabe de si, do ônus e do bônus, dos custos e dos benefícios.
No entanto, podemos perguntar ainda: se removido, pelo menos em parte, o desconforto de que estamos tratando, por intermédio de uma análise bem sucedida, será possível manter e até mesmo desenvolver, aprimorar mesmo, a capacidade de criar? Por que não? De que tem medo o escritor criativo? De que tem medo até mesmo o analista que se deixa contaminar por tais idéias? O que haveria de tão poderoso na psicanálise que poderia apagar o que de melhor tem uma pessoa? De fato, há aqueles que pensam que não vale a pena correr riscos, como se o risco de algo melhor também não fosse uma possibilidade. Risco, para eles, significa sempre e apenas o pior, o negativo, a ameaça, o perigo de morte. É verdade que corremos riscos desde que nascemos. Nossas mães não nos deixaram aprisionados em um quarto escuro para que não corrêssemos qualquer tipo de perigo. Pois, em um sentido mais amplo no modo de pensar a vida, risco apresenta também a possibilidade de uma experiência nova, criativa, positiva, que proporcione  crescimento psíquico, algo, portanto, inerente ao processo de se estar vivo.
Não faltam exemplos como o de Georges Bataille (1897-1962), que de aspirante a escritor passou à condição de autor consagrado, após ter sido aconselhado por seu analista a registrar suas fantasias sexuais e obsessões de infância. Ao se referir ao papel libertador da análise, Bataille afirma: “O primeiro livro que escrevi só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo poder dizer que só liberto dessa maneira pude começar a escrever.” (História do olho, Cosac & Naify, 2003).
Não penso que esta seja uma visão exageradamente otimista, mas a ótica de quem deseja viver plenamente suas possibilidades e desenvolver seu potencial como ser humano. Uma análise bem sucedida pode nos proporcionar tal experiência, e com ela o risco de vivermos mais confortavelmente, sem perdermos nossa capacidade de criar. A existência de incontáveis psicanalistas bons escritores, sobretudo aqueles que se dedicam à escrita ficcional, pode ser considerada uma evidência do que aqui exponho.
Pura ficção: que tal pensarmos Kafka e Saramago, ainda vivos, mais felizes e de bem com a vida, e escrevendo ainda melhor! Para nosso deleite, é claro.

Quatro pedras lascadas (Museu Britânico)


As 4 pedras lascadas datam de 100.000 anos AC, provenientes de Tebas. E também emocionam o viajante!

Foto: A. Vianna, 2012, Londres.

Pedra da Roseta


Quantas vezes o viajante se depara com a Pedra da Roseta, tantas ele se emociona. Ela é a Mona Lisa do Museu Britânico: sempre uma pequena multidão ao redor.

"A Pedra de Roseta é um fragmento de uma estela de granodiorito do Egito Antigo, cujo texto foi crucial para a compreensão moderna doshieróglifos egípcios. Sua inscrição registra um decreto promulgado em 196 a.C., na cidade de Mênfis, em nome do rei Ptolomeu V, registrado em três parágrafos com o mesmo texto: o superior está na forma hieroglífica do egípcio antigo, o trecho do meio em demótico, variante escrita do egípcio tardio, e o inferior em grego antigo.[1]"




Ref.:  http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedra_de_Roseta




Foto:, A. Vianna, 2012, Londres.

de corpo e alma


quando se tem 
mais de 60 anos
a idade
ora pesa
ora não pesa

pesa quando
o corpo fala
não pesa quando
a alma sorri

nessa idade
é preciso aprender
a conviver
com o corpo que dói
com a alma que ri

até o dia
em que não haja mais
motivo para dor
motivo para riso