terça-feira, 4 de setembro de 2018

Navegante

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Foto: AVianna, 2015.

Valor de um museu


Desde o Incêndio não consigo escrever uma linha sequer sobre a tragédia.
            Utilizo-me então de um artifício, eficiente mecanismo de defesa, volto no tempo, procuro na memória a emocionante experiência que vivi ao entrar em um museu, e que guardo comigo como relíquia – peça de museu.
            Aos 12 ou 13 anos, no ginásio, tomei conhecimento da existência da misteriosa Pedra da Roseta, aquela que permitiu o deciframento dos hieróglifos, a maravilhosa escrita dos egípcios. 
A pedra registra um decreto promulgado em nome do rei Ptolomeu V, inscrito em três parágrafos com o mesmo significado: o superior está na forma hieroglífica do egípcio antigo, o trecho do meio em demótico (variante do egípcio tardio), e o inferior em grego antigo. A comparação entre eles permitiu a compreensão dos hieróglifos por Jean-François Champollion em 1822.
Não é preciso dizer que o menino ficou fascinado pela pedra. Muitos anos depois, já adulto, entrei pela primeira vez no Museu Britânico, em Londres. De repente, olha a pedra alí, bem ao meu lado, ao alcance de minha mão. Disfarcei, dei-lhe um leve toque, sem que qualquer fiscal percebesse. (Hoje ela se encontra envolta numa redoma de acrílico, protegida de ingênuos e loucos.)


A emoção daquele momento é a relíquia que guardo comigo, e não há fogo que possa destruí-la. Haverá de perecer com minha morte, mas fica aqui registrada.

Fotoabstração N. 50







Foto: AVianna, jun 2018

Ruço em Petrópolis

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Foto: Regina, petropolitana, set 2018.

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Mulher com cerejas no chapéu

Meus quadros favoritos


Kees van Dongen (1905)

Festa de arromba!


Meu querido André,


escrevo novamente, antes mesmo que você me responda, e escrevo porque gosto, puro prazer, me acalma, me ajuda a organizar os pensamentos, e assim vou aprendendo a escrever, espero. (Na escola, o professor de português dizia que a gente não deve repetir palavras; bobagem, fica bonito, às vezes.)
            Desejo lhe contar história verídica que ouvi no salão, muito engraçada, que se bem contada você vai gostar. Ouço muita história no salão, você pode imaginar. Cidade pequena, os moradores adoram fazer fofoca em salões de beleza e barbearias, além do que minhas colegas de trabalho não fazem por menos, atiçam as freguesas, provocam, pedem detalhes, esticam o assunto quanto podem.
            Algumas são picantes demais, não tenho coragem de lhe contar, com medo que bote no blog. Outras são ingênuas, daí sua graça. A que vou lhe contar pertence a este último gênero.
            Naquela noite haveria uma grande festa de aniversário na cidade, em comemoração aos 70 anos de senhora de família tradicional, respeitadíssima, boníssima, lindíssima (três superlativos juntos também é demais!), trabalhadora, mãe de família exemplar, querida por todos. Unanimidade nacional, como Zeca Pagodinho. 
Desde a manhã o salão andava movimentado, todas querendo fazer o cabelo, maquiagem, unhas e o que mais houvesse para ser feito. Pois não é que também apareceram três homens, para cabelo, barba e bigode, que agora todos usam barba e bigode, até mesmo os que já não têm mais cabelo.  
            Ao final da tarde entra no salão o tipo de madame que chamo de empombada, metida a besta, se você me entende. Arrogante até a tampa. Foi logo alardeando que era parente próxima da aniversariante, praticamente uma irmã, e que vinha da Capital por especial convite. Sentou-se, a colega começou seu trabalho, e a senhora de quem não guardei o nome disparou um falatório raivoso, indignada com o tratamento que havia recebido no hotel onde se hospedara.
            – Merda de hotel! Há dois anos me hospedei lá e era bonzinho, simples mas limpinho. Agora, uma porcaria. Cheirando a mofo, quando abri o guarda-roupa quase caí de costas, o cobertor fedorento, o banheiro sujo, a tampa do vaso sanitário de plástico barato, papel higiênico transparente de tão fino, sabonete e xampu da pior qualidade, chuveiro com um pingo aqui e outro em Belo Horizonte, toalha de banho menor que a toalha de rosto lá de casa, uma porcaria. Chamei meu marido e disse, Amor, vamos embora desse pardieiro. Mas não havia outro hotel na cidade e o remédio foi ficar por lá. O que não tem remédio, remediado está, dizia minha avó.
            Como falasse alto, clientes e cabeleireiras, em silêncio, prestavam cuidadosa atenção àquela detalhada descrição do hotel, tido como bastante razoável pela população local, motivo até de orgulho para alguns. E a madame não parava de falar.
            – E tem mais! Quando chegamos à portaria, eu e meu marido fomos recebidos por sujeito mal-encarado, malvestido, que mal sabia falar, e que se identificou como Arcides, às suas ordens. Arcides! Vejam vocês, alguém que se apresenta como Arcides, que não sabe falar o próprio nome. Pode?
            (André, você que sabe das coisas, pode me explicar por que mal-encarado tem hífen e malvestido não tem?)
            E madame concluiu seus disparetes:
            – Para um hotelzinho de merda, um Arcides de porteiro!
            E madame riu, gostou de ouvir o chiste por ela fabricado, porém ninguém mais achou graça.
            O silêncio havia aumentado, agora podia-se ouvir uma mosca voando no salão. Minhas colegas estavam transparentes de tão brancas, lívidas, diria um escritor profissional, nenhuma delas tinha a coragem de balbuciar um a, e já explico o porque. 
            Foi então que a mulher da cadeira ao lado da madame arrancou o avental que lhe protegia a roupa, levantou-se desgrenhada num salto de pantera e bradou:
            – Pois fique a madama sabendo que Alllcides – esticando bem o ele – é meu marido, e é o dono do nosso hotel. E estou indo pra lá agorinha mesmo, vou pegar suas tralhas e rumar bem no meio da rua, lá a madama não fica nem mais um minuto, sua lambisgoia metida a besta, lambisgoia de merda. 
            E desembestou portafora como louca em direção ao hotel.
            Madame saiu bufando desnorteada, sem saber que rumo tomar, o penteado ainda por fazer. (Quis pedir um Uber, mas não havia Uber na cidade.)
            Fiquei sabendo no dia seguinte que madame e seu marido jogaram as roupas no porta-malas da Mercedes e escafederam-se. Perderam uma grande festa, regada a champanhe. Eu estava lá!
            Essa a historinha que desejava lhe contar, André, motivo de muito riso no salão, porque verdadeira, acredite ou não.
            Me escreva, querido.

Da sempre sua, 
                                   Suzete.