sábado, 2 de maio de 2020

O jornalista Ramos


Diante do rumoroso sucesso da crônica E daí?, do jornalista Ramos, publicada no Diário de Notícias da cidade de F., penso que Francisco de Oliveira Ramos, ou apenas Ramos, merece ser apresentado aos leitores deste blog.
            E merece apresentação por duplo motivo. Primeiro porque se trata de pessoa interessante, solteirão bem conservado em seus 50, homem culto, amante da literatura e das artes em geral, casmurro na maior parte dos dias, revelando às vezes certa instabilidade emocional, sujeito a pequenos surtos, como todos nós, o que explica a explosiva paródia da citada crônica. O que não empalha o brilho de suas contribuições para o jornal.
            Ramos vive modestamente, com minguado salário do Diário; às vezes publica em uma ou outra revista de variedades, o que lhe rende dinheirinho extra, reservado para viagens de trabalho – ele gosta do jornalismo investigativo, fã incondicional de Truman Capote, daí o toque literário de seus textos. Mora numa casa modesta, em pequena chácara na periferia de F., em companhia de seus cães, onde cultiva hortaliças, colhe algumas frutas, desfruta do silêncio necessário para ouvir boa música, ler seus autores prediletos.
            O segundo motivo para apresentá-lo aqui é mesmo surpreendente! São “as voltas que o mundo dão”, bem o disse Guimarães Rosa. Coisas da vida, de um vida sobre a qual não exercemos qualquer controle, a nossa nem a dos outros, todos personagens de um romance sem pé nem cabeça, escrito no livro non sense da vida cotidiana, a ponto de gente sabida como Jorge Luis Borges afirmar que realidade e ficção são a mesma coisa.
            Ramos foi cortar o cabelo e conheceu Suzete!
            Suzete mudou-se para F. há dois anos e meio, onde abriu salão de beleza com secção de cabeleireiro para homens e mulheres, maquiagem, manicure e pedicure – só para mulheres, que os homens de F. não fazem as unhas –, massagem, drenagem linfática, coisa fina, empreendimento de alta rentabilidade a serviço da fina flor da sociedade de F..
            Quando Ramos entrou no amplo salão e pediu para cortar o cabelo, foi Suzete quem se apresentou, ela que adora cortar cabelo de homem. Instalado em confortável cadeira, nem bem iniciou o corte, Ramos notou junto a pentes, escovas, pinceis e outros petrechos da cabeleireira, volumoso livro cujo título não conseguia ler. Desculpe perguntar, que livro é este sobre a mesa, é você quem está lendo, Quem mais poderia ser, por acaso uma cabeleireira não pode gostar de ler, Claro que pode, me desculpe o jeito de perguntar, Está desculpado, reconheço que não é mesmo comum, E o tijolo afinal, o que é, As irmãs Makioka, de Jun’Ichiro Tanizaki, e Ramos, perplexo, disparou De onde você desenterrou isso, ouvindo em seguida sonora gargalhada de Suzete, que aproveitou para esnobar o jornalista, É autor japonês de renome, já li três livros dele, o senhor não conhece, tudo indicações que encontro no blog Louco por Cachorros, não vá me dizer que o senhor também não conhece o blog, ah! e também gosto de escrever, está vendo aquele caderno ali, tem crônicas, contos, até um poeminha eu arrisco de vez em quando.
Ramos, atônito, não sabia o que pensar diante da fala articulada, culta, de senso crítico apurado da cabeleireira (passou-lhe uma sombra pela cabeça, pois pensou mesmo foi... de uma simples cabeleireira). Ele não conhecia o livro nem o autor, muito menos o blog de nome esquisito, Louco por cachorros? Que diabo era aquilo? Haveria de pesquisar, poderia até dar um bom artigo para o jornal. Cabeleireira que gosta de ler e escrever? Se bobear, vai parar no Fantástico!
Findo o serviço, Suzete espanou alguns fios de cabelo que porventura houvessem caído na camisa do cliente, recebeu o pagamento e os agradecimentos devidos, Meu nome é Ramos, sou jornalista, muito prazer, Eu me chamo Suzete, volte sempre.
          Ao deixar o salão Ramos murmurou consigo mesmo, Como sou preconceituoso! Quinze dias depois lá estava ele de volta ao salão, apenas para aparar o cabelo sobre as orelhas...