O ano nem
bem começou e as frustrações não param de se acumular. A doença grave de uma
pessoa querida, o filho de pessoa ainda mais querida, produz em mim uma espécie
de imobilidade mental. Difícil pensar em outra coisa, dizem-me os pais, e o
mesmo digo eu.
Em tais condições, precisamos de
algo capaz de quebrar o círculo vicioso, capaz de conter o cachorro que corre
atrás do rabo, capaz de cessar o contínuo pensamento do tipo psicótico, ou o
não-pensamento. Algo que nos possibilite voltar a pensar.
Pode ser uma fala de um amigo, pode
ser uma palavra solta no ar, pode ser um insight,
um estalo, uma iluminação, um poema.
“CADA INSTANTE DESSE TEMPO FOI
MULTIPLICADO POR UMA VIDA PARALISADA.”
A frase encontra-se em o Livro, do escritor português José Luís Peixoto
(Companhia das Letras, 2010). (Pode parecer confuso, mas é isso mesmo, o nome
da obra é LIVRO.) O que importa é que uma frase em um livro, se nos pega de
jeito, pode quebrar o tal círculo psicótico do não-pensar. Pois pegou-me de
jeito a frase do Peixoto.
Uma pessoa inconsciente, em coma, seja ele de que natureza for (o coma),
tem sua vida paralisada. Porém, ela está viva, e vive cada instante daquela
experiência, mesmo tendo a vida paralisada. Para o observador, aquele que olha
de fora, é difícil compreender esta sucessão contínua de instantes que se
multiplicam por uma vida paralisada.
A primeira impressão é que se multiplica um determinado número por
ZERO, e o resultado será necessariamente ZERO. Uma das possíveis interpretações
deste zero é o NADA, a expressão mais evidente de uma negação. Eu vejo mas não
estou acreditando. Outras vezes, nem VER é possível: é NADA mesmo.
Zero também pode traduzir sensação de fracasso, e com ela, a culpa. O
pensamento religioso, aquele que não leva em consideração as circunstâncias,
porque é fechado em si mesmo, reforça o sentimento de culpa e,
consequentemente, o pensamento do tipo psicótico. O cachorro continua a correr
atrás do próprio rabo.
O zero aniquila a autoestima, e o vazio é preenchido pelo ódio. Não há
ódio pior que o ódio a si mesmo.
Nada contra a negação: cada um se defende como pode. Mas tanto a
Ilusão, quanto sua irmã, a Mentira, ambas têm perna curta. Carlos Drummond de
Andrade, em seu poema Os ombros suportam o mundo, num rasgo de duríssima
clarividência, escreveu: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.”
Prossegue o poeta: “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios/provam apenas que a vida prossegue...”
E conclui o poema de forma magistral:
“Alguns, achando
bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os
delicados) morrer.
Chegou um tempo em
que não adianta morrer.
Chegou um tempo em
que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem
mistificação.”
E o ano nem bem começou...