O tema de que tratarei em seguida é ao
mesmo tempo de grande interesse para mim, e espinhoso; aceito-o por sugestão –
ou se trata de uma provocação? –, apresentada por uma pessoa muito querida e
que também aprecia o assunto, mas com uma diferença entre nós, o que não impede
que conversemos sempre: ele pertence aos que creem, e eu aos que não creem.
Trata-se
do artigo de Cláudia
Collucci publicado na Folha de S. Paulo (24/11),
sob o título Religião é benéfica para tratamento
psiquiátrico, diz associação.
A Associação Mundial de Psiquiatria
acaba de aprovar documento declarando a “importância de se incluir a
espiritualidade no ensino, pesquisa e prática clínica da psiquiatria”. A
proposta não é prescrever uma crença religiosa ao paciente, mas conversar sobre o assunto.
Os estudos científicos sobre o tema tornam-se cada vez mais frequentes, e a
maioria deles conclui que “há correlação entre espiritualidade e bem-estar”,
especialmente entre pessoas sob estresse ou em situações
de extrema fragilidade. Alguns pesquisadores sugerem que a religiosidade sirva para “reforçar laços sociais,
reduzindo a incidência de solidão e depressão e amenizando o estresse causado
por doenças ou perdas”.
Diz o artigo: “Três meta-análises
(revisões científicas) já realizadas sobre o tema indicam que, após controle de
variáveis como estado de saúde da pessoa, a frequência a serviços religiosos
esteve associada a um aumento médio de 37% na probabilidade de sobrevida em
doenças como o câncer.”
Outro estudo recente publicado na
revista Cancer revisou dados de mais
de 44 mil pacientes e concluiu que “são os aspectos emotivos da espiritualidade
e da religiosidade aqueles que mais trazem benefícios para a saúde física e
mental de pacientes com a doença”.
Por outro lado, as crenças religiosas
também podem atuar de modo negativo, “quando enfatizam a culpa, a aceitação
acrítica de ideias, (...) punição, intolerância, abandono de tratamentos
médicos".
É verdade
que médicos, incluindo psiquiatras, e certos psicanalistas, evitam tratar do
assunto religião com seus pacientes. Pouco conversam sobre o assunto,
considerando-o algo que pertence exclusivamente ao foro íntimo do paciente. Segundo
Kenneth Pargament, professor de psicologia clínica na Bowling Green State
University (Ohio), entre as razões para tal comportamento estaria a “antipatia
pela religião que sempre houve entre os ícones da psicologia, como Sigmund
Freud”. Para este pesquisador, “é importante a compreensão de que a religião e
a espiritualidade são entrelaçadas no comportamento humano e que os
profissionais precisam estar preparados para avaliar e abordar questões que
surjam no tratamento. Para muitas pessoas, a religião e a espiritualidade são
recursos-chave que podem facilitar o seu crescimento. Para outros, são fontes
de problemas que precisam ser abordadas durante o tratamento."
Devo ainda ao
provocador deste texto, a tal pessoa muito amada, o prazer da releitura de O futuro de uma ilusão, de Sigmund
Freud. Afirma o criador da Psicanálise:
“O desamparo do homem,
porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes
mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os
homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na
morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em
comum lhes impôs.”
Freud está a referir-se
à infância da raça humana e a do próprio indivíduo: todos nós, ainda hoje,
mesmo adultos. Alguém já disse: arranhe um adulto e verá surgir uma criança.
Freud continua:
“Quando o indivíduo
em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para
sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes
superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura
do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e
a quem, não obstante, confia sua própria proteção.”
E conclui, ao
referir-se às ideias religiosas:
“... são ilusões,
realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo
de sua força reside na força desses desejos.”
Bem, após esta longa
argumentação freudiana, vamos ao que interessa, em relação ao artigo que inicia
este texto e em particular ao que o Dr. Pargament chamou de “antipatia pela religião”.
Ele não deve ter lido Freud atentamente; eis o que Freud afirmou:
“Quando digo que
todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro;
tampouco é necessariamente um erro. ...O que é característico das ilusões é
o fato de derivarem de desejos humanos.”
O grifo é meu, e desejo
salientar a tolerância e compreensão aqui demonstradas por Freud para com a
humanidade. Iludir-se, é verdade, é uma escolha pessoal, mas não
necessariamente um erro. E desejo é desejo! Em determinadas circunstâncias,
especialmente aquelas de fragilidade intensa, por que não ser consolado?
Aí entra a habilidade
do médico, do psiquiatra, do terapeuta, em poder conversar com seu paciente, em considerar
verdadeiramente o que ele traz para a consulta – seus temores, angústias,
incertezas, fraquezas, pavores infantis – mesmo que o assunto não seja aquele
da “predileção” do profissional. Enfim, a capacidade de lidar com os aspectos
emocionais mais profundos do paciente, muitas vezes ligados à crença religiosa
dele. Falar sobre isso pode ser muito importante para o paciente; saber
ouvi-lo, uma arte.
No entanto, se é
sentimento de culpa ou necessidade de punição que o paciente traz, isso também
precisa ser conversado e esclarecido, quando possível. O trabalho analítico bem
conduzido pelo analista e analisando pode propiciar enorme alívio em tais
circunstâncias.
Aqui concordo inteiramente com a proposta da Associação Mundial de Psiquiatria, que prescreve um
melhor preparo dos profissionais para lidar com o tema com seus pacientes. Em
outras palavras, que os profissionais sejam menos arrogantes e donos da
verdade, e mais humanos, ao admitir que a humanidade ainda não se libertou de sua
infância.
Referência: