quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Autoridade e violência


             A excelente crônica de hoje do psicanalista e escritor Francisco Daudt na Folha trata da violência e das suas diversas formas de expressão. (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/204803-violencia.shtml)
Daudt termina com tema recentemente abordado neste blog, a partir de ensaio publicado na revista Serrote por Joseph Epstein, intitulado Infantocracia: cada menino, um delfim. (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2014/12/a-tirania-das-criancas.html)
            Trata-se da relação entre pais e filhos, aparentemente mais conturbada do que nunca nos dias de hoje. Eis a abordagem de Daudt:

“A disparidade de poder entre uma criança e um adulto é a situação mais delicada com que lidamos: precisamos exercer autoridade junto a nossos filhos, eles precisam disso. Em situações limite, a autoridade também precisa lembrar que é mais forte (quando, em geral, basta mostrar que é mais sábia). Se os pais desenvolverem medo de seus filhos, porque o senso comum os vê sempre como coitadinhos, não exercerão mais autoridade sobre eles, e com isso... estarão sendo sutilmente violentos.”

            A palavra chave é autoridade, aplicável tanto no ambiente familiar quanto em sala de aula. Se a criança realmente precisa dela, negá-la é um ato de violência, segundo
Daudt. A sutileza a que se refere o autor reside exatamente no fato de que a criança sem limites encontra-se perdida, desamparada, frágil, aterrorizada muitas vezes, embora demonstre autossuficiência sob a forma de arrogância defensiva – o leitor perdoe o pleonasmo. Deixá-la nessas condições é um tipo de violência, raramente reconhecida pelos pais e pela sociedade em geral.
            Daudt fala ainda do medo que os pais sentem de seus filhos e penso que a infantocracia a que se refere Joseph Epstein é que acarreta nos pais tal sentimento.
            O sentimento que falta para completar este quadro angustiante é o sentimento de culpa, reconhecido ou não pelos pais, ao tentarem exercer autoridade sobre os filhos. Em algum lugar, num determinado momento, os pais aprenderam que dizer Não é errado, sob o ponto de vista pedagógico. Esqueceram-se que dizer Não significa justamente estabelecer limites, a criança ou o adolescente gostem ou não. Em tais circunstâncias, dizer Não é um ato de amor.
            O adulto, porém, não pode se esquecer daquilo que Daudt chamou de “a disparidade de poder”, entre ele, adulto, e a criança. A fronteira entre autoridade e autoritarismo é tênue e requer sabedoria para não ser transposta. A criança, mesmo que não compreenda quando há invasão, ela o sente, e fica marcada por isso.
Não é fácil ser pai ou mãe, muito menos filho...
            

O ducentésimo microconto


Baseado em fatos reais.

Homem, 32, desempregado, joga videogame numa lan house, sem parar nem para comer. Após 3 dias é encontrado morto, debruçado sobre o teclado.
           
Com o microconto acima, o Loucoporcachorros chega à histórica marca de 200 microcontos publicados. O mote é oportuno, sugere que não se deve passar muitas horas em frente ao computador, isso pode ser mortal. Daí a relevância do microconto: rápido, rasteiro, no canto em que o goleiro não está!
Afinal, o que é um microconto? Alguns o chamam de miniconto, ou até de nanoconto; não há uniformidade de regras, a não ser aquela imposta pelo Twitter, que o limita a 140 toques. Quando surgem concursos de melhores microcontos, os organizadores estabelecem as regras, limitando o número de toques, letras ou palavras. (O Loucoporcachorros segue a regra do Twitter.)  O que não faz diferença alguma, pois os teóricos (ainda) não o reconhecem como gênero literário. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, nem mesmo registra o vocábulo microconto.
Os aficionados não cansam de enaltecer o que chamam de o mais famoso microconto do mundo, de autoria de Augusto Monterroso:

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”

            Parece que Marcelino Freire concorda com isso, pois deu-lhe destaque em Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004), embora Monterroso tenha nascido em Honduras e vivido no México.
            Tão surpreendente quanto este “dinossauro”, ou ainda melhor, é o microconto de Manoel de Barros; reconheço que sou o primeiro e único a classificá-lo como tal, pois faz parte de livro de poemas (Poesia completa, Leya, 2010, p. 222), e não de contos:

“Ovo de lobisomem não tem gema.”

            Através destes dois exemplos – ainda em busca de uma definição –, podemos concluir que o microconto, muito mais que contar uma história, ele sugere uma história, e deixa que o leitor a complete.
            Franz Kafka escreveu em seu diário, em 6 de dezembro de 1922, o microconto perfeito, a ilustrar tudo o que foi pensado até agora:

"Duas crianças, sozinhas no apartamento,
entraram numa grande mala, 
a tampa fechou-se, não a conseguiram abrir
e morreram asfixiadas."

            O Loucoporcachorros inaugurou, tempos atrás, o microconto Baseado em fatos reais. Ao tomar conhecimento das notícias do cotidiano, percebi que muitas vezes não há diferença entre ficção e realidade. Publico o microconto e deixo para o leitor a decisão de acreditar ou não na realidade: Ah!, isso é conversa fiada, dirão alguns. Eis um bom exemplo de história baseada em fatos reais:

“Agora estou tranquilo, afirmou o assassino, preso após decapitar 6 pessoas.”

            Outro exemplo:

“Presidiário é escoltado até a delegacia mais próxima para registrar queixa
de roubo de celular ocorrido em sua própria cela.”

            Mais uma definição de microconto: a arte de cortar palavras. O exercício propicia o desenvolvimento da concisão. Nossos políticos bem que poderiam cultivá-lo, como antídoto para a prolixidade que os caracteriza. Filósofos e psicanalistas lacanianos também.
            O Loucoporcachorros publica hoje seu ducentésimo microconto, certo de que o formato se presta como uma luva à ligeireza da Internet, mais precisamente aos blogs. Mesmo sem o reconhecimento da Academia, acredito que o microconto já pode ser considerado um gênero literário. (Alô! mestrandos e doutorandos, eis um tema para uma boa tese...)
            Ítalo Moriconi, organizador de Os cem melhores contos brasileiros do século (Objetiva), à guisa de prefácio ao livrinho de microcontos organizado por Marcelino Freire, escreveu:

“É no lance do estalo que a cena toda se cria.
Na narrativa e na poesia.
Alguém já disse, poesia é uma frase
Ou duas e uma paisagem inteira por trás.”

São palavras que se ajustam perfeitamente à elaboração do microconto.

Suicídio


Baseado em fatos reais.

Homem, 32, desempregado, joga videogame numa lan house.  Após 3 dias é encontrado morto, debruçado sobre o teclado. 

poucos



poucos os leitores poucos
esses amores tampouco
enchem das mãos os dedos
pouco o tempo pouco
de contar os dias
e de contar os medos
dias que eram como que
um cantar de melodias leves
justas concisas condensadas breves
de um desbravar de meio-dias
em segredo
pouca a leitura tão pouca
hegel marx freud o teeteto
a filosofia que a literatura espouca
louca
rouca
o dharma o dao a trilha reta
o que então por quanto tempo
um tempo de instantes
tristes mudos e vibrantes
que eram horas antes
e contudo agora
são segundos poucos
tão poucos mesmo

                                              aldo pereira neto