Folhetim
Décimo quarto encontro
No décimo quarto encontro, com tema livre, o grupo se divide entre os que escrevem à larga, sem peias, gostando do vento batendo no rosto como numa veloz cavalgada, e aqueles que diante da folha em branco ou da tela vazia, empacam, tamanha dificuldade diante da partida.
Aí está a razão pela qual Tobias escolhe o tema livre. Professor, não sei por onde começar, afirma Beatriz; ela é jornalista e necessita de um mote, um fato jornalístico, para começar, não sabe escrever ficção. O mesmo acontece com Solange, dona de casa, sempre muito atarefada, mas quando senta para escrever, As ideias somem, Professor! Tina não sofre desse mal, Tenho muitas histórias para contar, aqui vai uma delas:
Cruzava uma ponte sobre um ribeirão do qual já não me lembro o nome quando vi um menino pequeno dentro daquela água fétida, em plena enchente, tentando recuperar uma bola de futebol. Outras pessoas já se aglomeravam sobre a ponte, gritando para que o menino saísse da água. Reconheci-o! Chamava-se André, filho de Ondina, minha amiga que morava na casa ao lado. Corri até lá, gritei pela mãe, para que ela com sua autoridade obrigasse o menino a sair da água. Esbaforidas, corremos as duas para a ponte, mas André já estava na margem, agarrado a sua bola.
– Vai para o castigo, menino, bradou-lhe a mãe.
– Vou, mas com minha bola na mão!
Choveram aplausos, Tina, você precisa escrever um livro, disse Suzete, conte mais histórias deliciosas como esta!
Tobias, de onde veem essas ideias estranhas que os escritores colocam em livros e mais livros, pergunta Tomás, timidamente; de onde veio aquele microconto do Kafka, onde as crianças se trancam dentro de uma mala e morrem sufocadas? Esta é uma pergunta interessante, de onde veem as ideias, e ninguém menos do que Freud procurou respondê-la, disse Tobias. Veem do inconsciente, segundo o mestre. A bela história que nos contou Tina vem das experiências pessoais dela, guardadas na memória. Nossas experiências de infância são sempre muito ricas, e acabam esquecidas porque não as escrevemos. Qualquer ideia serve, desde que a forma seja de qualidade – não canso de repetir isso. Oficina serve para tratar da forma.
Ela conviveu conosco nos últimos 15 anos. Era da família, gente como a gente. Chamava-se Flor. Era da raça shih-tsu, branca com manchas marrons, o rabinho peludo, sempre alegre e meiga a abanar o rabinho. Mas envelheceu, a catarata avançada, acabou ceguinha de tudo, sofria com a artrose mas ainda andava pela casa sem se perder. Agora vem o mais interessante da história, Flor perdeu o apetite completamente, daí o emagrecimento progressivo, sem força nem para andar, a prostração doentia. Até que descobrimos o único alimento que Flor aceitava com gosto, comia com prazer e lambia os beiços e pedia mais: caqui. Flor era louca por caqui, comia caixas e mais caixas de caqui, e ainda viveu entre nós alguns anos comendo caqui! Acabou morrendo de velhinha. Nós, que ficamos, toda vez que comemos caqui nos lembramos de Flor. Ela ainda está entre nós.
Tudo serve para a escrita, continuou Tobias, mas a forma é essencial. Apresento-lhes pequeno trecho das Memória póstumas de Brás Cubas, cuja mãe acabara de falecer. Escreve Machado, na voz de Brás Cubas:
“A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca.”
Vejam os senhores, em pleno sofrimento da perda materna, Brás Cubas nos fulmina com a mais fina ironia: os ossos não emagrecem nunca! Que ousadia! Que humor fino! Que imagem para se guardar para sempre: os ossos não emagrecem nunca! Frase como esta vale um milhão. Procurem essas frases – elas estão por aí –, ousem, não tenham medo do ridículo, corram riscos, saiam do ramerrão papai-mamãe, liberdade liberdade liberdade de pensamentos e ideias.
Via-se, Tobias empolgara-se! O grupo percebe o entusiasmo nas palavras dele, e isso é contagiante. Aplaudem calorosamente.
Suzete ainda relata interessante episódio ocorrido em seu salão de beleza, em que um homem morrera exsanguinado por uma tesourada na virilha, a artéria femoral seccionada. Ela faz daquilo um conto policial.
Senhores – é sempre com essa palavra mais ou menos solene que Tobias encerra os trabalhos do dia –, amanhã teremos nosso último encontro. O tema será: EM RESUMO.
Tenham uma boa tarde.