O cinema ocupa cada vez mais lugar de
destaque em nossa cultura, tanto pelos temas que aborda como pelo
desenvolvimento de novas técnicas de filmagem, merecendo definitivamente ocupar
o panteão das artes.
Tenho visto filmes ruins, alguns regulares,
bons filmes em menor número, e poucos filmes que não nos deixam em paz,
martelam em nossa cabeça como que a exigir interpretações variadas, a exigir
crítica aprofundada, incluindo a observação de aspectos novos de técnica
cinematográfica, um inferno! Talvez o que esses filmes peçam é que continuemos
a pensar sobre eles, que conversemos sobre eles, e quando possível, escrevamos
sobre eles.
Reluto, pois estou longe de ser um
crítico de cinema. Porém, diante da martelação, melhor registrar a ocorrência
mesmo que com singeleza: escrevo sobre Além das Palavras, do diretor Terence
Davies, lançado em abril de 2017, com o título original de A quiet passion.
(Ambos os títulos me parecem bem apropriados, com pequeno ganho para a
construção em língua portuguesa.)
O filme conta a trajetória de Emily
Dickinson (estrelada de forma magistral por Cynthia Nixon), a grande poeta
americana, desde sua juventude até a morte. Ela nasceu em Amherst,
Massachusetts, em 1830, saindo poucas vezes de sua cidade natal, onde faleceu
em 1886, com 55 anos. Vivendo enclausurada em sua casa e presa ao conservadorismo religioso dos
Estados Unidos do século XIX, Dickinson produziu uma poesia moderna, com liberdade
sintática próxima do uso oral da língua, desprezando fórmulas convencionais.
O filme expressa essa vida reclusa da
poeta por três características marcantes. A primeira delas é o ritmo das cenas,
lentíssimas; a câmera movendo-se no teatro, do palco para o camarote e de volta
ao palco, é antológica; até as carruagens quando partem, o fazem vagarosamente,
como se os cavalos vivessem mesmo naquela velocidade; os passeios pelo jardim
encantador, a propósito de íntimas conversas, são a passos vagarosos; as
cenas de contemplação, nem é preciso
dizer, muito lentas. O recitar pausado de seus poemas completa e enfatiza esse
aspecto.
A segunda característica é a repetição
de certas atitudes dos atores, sempre as mesmas; Emily, depois de pedir
permissão ao pai, acordava sempre de madrugada, lápis e papel na mão,
sentava-se na sala e compunha seus poemas, na “melhor hora do dia”, segundo ela;
e gostava de explicar, a quem quer que fosse, que aquela era a melhor hora do
dia.
A terceira e mais impressionante característica
é de ordem técnica: desde as primeiras cenas o diretor coloca o ator na
contraluz; há sempre uma porta ou janela por trás do ator, a irradiar
claríssima e intensa luz, a exigir iluminação complementar frontal, ou veríamos
apenas silhuetas; a combinação desses dois tipos de iluminação oferece ao
expectador visão estética única, em meu ponto de vista.
A lentidão, a repetição das ações, a
luz (vida) presente lá fora, oferecem a visão perfeita do que foi a vida de
Emily Dickinson. Um grande filme, portanto. Quanto a poesia de Dickinson, para mim este é um
outro problema que fica para uma próxima crônica.