Meu querido André,
faz tempo que não lhe escrevo e sinto falta
disso. Também pudera, com essa vidinha besta que tenho levado – só cortar
cabelo de homem, que aliás eu gosto –, as novidades rareiam. Mas no último fim
de semana surgiu algo de novo, para quebrar a tal rotina besta. Então, veio o
desejo de lhe contar o sucedido.
Rosa,
amiga recente mas desde já ganhando ares de intimidade, moça boa, me parece,
educada, que também gosta de ler mas não escreve uma linha, diferente de mim
nesse ponto, o que não faz diferença para a nossa amizade, apois, Rosa me convidou para passar o fim de semana
na cidade dela, interior de Minas (desculpe o pleonasmo, Minas só tem
interior...), cidadezinha de nome estranho, embora bastante sonoro: Capelinha
do Chumbo.
Gostei
do lugar, muita ladeira, um vento seco, tudo muito simples e pobrinho, e sábado
pela manhã que fomos a um buteco, assim mesmo como u, comer lambari frito e queijo com cerveja e uma
pinga para rebater o frio, as pessoas todas gentis, uma cachorrada incrível vagando
pelas ruas, todos bem alimentados, cachorros de todos os tamanhos e de uma
única raça – vira-latas todos, cada um com sua própria mestiçagem –, mas o
melhor de tudo foi a conversinha boa, maneira, fiada, quer dizer sem
compromisso, o dono do bar sentou-se em nossa mesa e animou com a
piada do bêbado que ao voltar para casa, carregando um litro de cachaça junto ao
peito, à noite, na escuridão do breu, ao atravessar um corguinho (é assim que
falam por aqui) escorregou, caiu, sentiu a camisa molhada, e exclamou: Deus
queira que seja sangue!
Rosa
querendo agradar, eu recebendo as gentilezas. À noite, ela me convidou para uma
churrascaria, haveria um show de música sertaneja, ela levaria o irmão, morador
da cidade, motorista de caminhão, interessado na minha pessoa, insinuou Rosa.
Fazer o quê?
André,
tenho ódio de churrascaria. E mais, tenho ódio de música sertaneja. Se Rosa
queria agradar, eu só poderia aceitar as gentilezas, não é mesmo? Dizia a minha
mãe (você ficou sabendo que ela faleceu?): pelo santo se beija o altar. Lindo
provérbio, eu acho, apropriado para casais em que um deles não tolera a sogra,
mas vai levando o casamento em banho-maria. Apois, fomos à churrascaria.
Salão
enorme, os homens com chapéu de vaqueiro, camisa xadrez verde ou azul, calça
jeans, as mulheres (bonitas!) mostrando o que tinham de melhor em seus
guarda-roupas, garçons solícitos, Rosa era amiga do dono, ele veio até nossa
mesa, fomos apresentados, rapaz bem apessoado, para usar uma expressão
machadiana (que pretensão a minha...), Társio, o irmão da Rosa desmanchando-se
em mesuras e rapapés (Machado teima em se intrometer), todo mundo falando alto,
muita aguardente, muita cerveja, muita alegria. Eu, preocupada.
Até
que o show começou! A cantora, ainda moça, esgoelou por hora e meia sem
intervalo, sem uma única pausa, uma música emendada na outra, nem tempo havia
para os aplausos, o violão de acompanhamento precário, traaammm-traaammm-traaammm,
entende como é?, o instrumento maltratado, pobre violão.
Na mesa ao lado, três
moças e três rapazes; as moças conversavam com as moças e os rapazes com os
rapazes; uma delas cantarolava todas as músicas, sabia todas as letras, poderia
substituir a cantora principal em caso de urgência, e você bem sabe, André,
aprendi com você que na vida só há uma urgência: caganeira (nada machadiano,
isso).
Mas não houve necessidade
de substituição, e a moça gritou até não poder mais. Às tantas, Társio pediu
uma garrafa de vinho, Concha Y Toro naturalmente, isso depois de um gole de 51.
Definitivamente ele queria me impressionar. Ah! os homens, tão previsíveis! Ele
queria apenas me comer.
Em poucos minutos Társio
ingeriu a primeira garrafa de vinho e pediu a segunda. Minha preocupação
aumentou. Chegou a carne: queimada! Meu deus, será que a noite vai ter fim ou
vou permanecer nesse martírio madrugadadentro? Engraçado, André, a gente
experimentar o sentimento de extrema solidão, mesmo imersa numa multidão.
Me contive, quase não
bebi, nada comi, permaneci alerta. Depois da segunda garrafa de vinho Társio
tornou-se inconveniente agressivo invasivo (também aprendi com você isso de
enfileirar adjetivos sem vírgula, que é para o leitor nãofazerpausas), eu
atordoada com o sertanejo gritado da moça, Rosa visivelmente interessada no
dono da churrascaria, Társio pegando no meu braço com insuportável bafo de
pinga, e a pergunta O que estou fazendo aqui?, e a resposta que não vinha.
(Com frequência nos
expomos a situações como esta, extremamente desconfortáveis, uma violência
contra nós mesmos, quando então surge esta pergunta O que estou fazendo aqui?,
e os episódios se repetem ao longo de nossa vida, não aprendemos nada com as
sucessivas experiências, o que é isso, André? Pode me explicar? Tentativas de auto-extermínio?
Falta de auto-respeito?)
Às tantas me levantei,
determinada, puta da vida, Vamos embora, falei sem chance de réplica, me
olharam com espanto, Será que ela surtou?, Vamos embora, estou cansada, o dono
da churrascaria Mas vocês não vão esperar pelo fim do show?, Não, não vamos,
vamos embora, respondi brusca deseducada agressiva, Társio com cara de cachorro
que caiu da carroça de mudança, e fomos. Tenho ódio de churrascaria, música
sertaneja e garanhão bêbado. Nem sempre se pode beijar o altar.
André, desejo apenas
repartir com você as peripécias de uma noite mineira, uma tentativa vã de sair
desta vida besta. Há mesmo solução para esta vida besta? Me diga?
Da sempre sua,
Suzete.