Para algumas pessoas a ideia de um Diário remete ao comportamento adolescente de registrar cenas banais do cotidiano, de modo meloso, derramado, num caderninho cor-de-rosa. Nada mais enganoso. Trata-se de gênero literário dos mais interessantes, desde que explorado por autores que sabem valorizá-lo.
Tenho destacado com
insistência neste blog o que chamo de escrita terapêutica. Penso que uma
possível comprovação de minha tese é a publicação, por incontáveis autores de
renome, de um certo tipo de literatura denominado Diário.
Sob o ponto de vista
puramente literário, pouca coisa compara-se aos Diários de Miguel Torga.
Pseudônimo de Adolfo
Correia da Rocha (Vila Real, São Martinho
de Anta, 1907
— Coimbra, 1995), Torga foi um dos mais
influentes escritores
portugueses do século XX. Destacou-se
como poeta, contista, memorialista, romancista, ensaísta e autor de peças de teatro.
Escreveu 16 volumes de Diários,
de 1941 a 1993, todos editados pela Coimbra, Portugal, edição do autor, com o
mesmo formato, capa, papel, contendo poemas, crônicas, aforismos, observações
emocionadas sobre fatos banais do cotidiano. O fato de ter exercido a Medicina –
era otorrinolaringologista – no interior de Portugal enriqueceu-lhe a
experiência de vida, o que foi registrado magistralmente nos Diários. A forma,
inigualável!
Torga encerra o último
volume dos Diários, a 10 de dezembro de 1993, com o poema:
Réquiem por mim
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de
acabar assim,
Em vez de natureza
consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os
órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e
desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do
destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse
como porfiei,
E caísse de pé, num
desafio.
Rio feliz de ir de
encontro ao mar
Desaguar.
E, em largo oceano,
eternizar
O seu esplendor
torrencial de rio.
Outro bom exemplo do
gênero são os Diários de Franz Kafka, iniciados em 1910 e findos em 1924,
plenos de angústia e tormento. Em 12 de junho de 1924 ele escreveu:
“Sempre ansioso no
instante de escrever. Isso se compreende. Cada termo, na mão dos espíritos –
este impulso na mão é o toque que os caracteriza – torna-se um flecha atirada
àquele que fala. E muito especialmente uma observação como esta. E assim até o
infinito. O consolo estaria em que pudéssemos dizer: Tal sucederá, quer o
desejes, ou não. E a tua parte de vontade apenas debilmente colabora. Mais do
que o consolo, seria poder verificar: Tu também possuis armas.”
Kafka escreve para si
próprio, esta a impressão que nos transmitem seus Diários.
Entre nós, recentemente,
sob a organização de Ésio Macedo Ribeiro, a Civilização Brasileira (2013)
publicou os impressionantes Diários de Lúcio Cardoso, um tijolo de 740 páginas,
que eleva o gênero ao seu mais alto nível. O grande autor de Crônica da casa assassinada escreve em
1942:
“Apanha-me agora a
sensação de vazio que costumo sentir e que certamente não é a nostalgia de
qualquer das certezas perdidas. É impossível viver assim. Solto-me, largo as
amarras e vou; não há nada que me prenda. Há horas em que verdadeiramente saio
do mundo. Quem sabe mesmo se não me dissolverei? Pouco a pouco os pensamentos,
as ideias, a consciência vão fugindo, fugindo, e assim talvez eu acabe por
acabar de todo alguma vez.
Apavoro-me com isso.”
Alguma coisa aproxima os três trechos aqui
apresentados, vindos de autores tão diversos no tempo, no estilo, na própria
literatura de cada um. Mas há algo de comum entre eles. Penso que seja a
intimidade transmitida pela forma Diário.