Livro alerta para o surgimento de uma 'cultura do vitimismo' - Esquerda identitária estaria passando por processo de infantilização ao exigir 'espaços seguros' sem ofensas: é o título do artigo de Antonio Risério, especial para o Estadão (6 nov 2021).
Afirma Risério: “Camille Paglia fala de uma espantosa infantilização das mulheres na esfera do neofeminismo puritano hoje reinante, como se as moças precisassem de tutores e babás. O avesso do feminismo libertário e “pro-sex” da década de 1960, quando as mulheres resolveram falar e agir por si mesmas, assumindo as consequências de seus atos e desejos. Mas a verdade é que uma incrível infantilização das pessoas tomou conta de toda a movimentação identitária norte-americana. Bradley Campbell e Jason Manning começam por aqui o livro The Rise of Victimhood Culture (A Ascensão da Cultura do Vitimismo), sobre a onda neurótico-vitimária estadunidense, hoje se espalhando por outros países e continentes.”
Após a vitória de Trump, em 2016, “estudantes entraram em desespero “existencial” com a notícia, enxergando no horizonte verdadeiros pogroms contra “progressistas”. Universidades forneceram assistência psicológica aos mais abalados. “A Universidade do Kansas ofereceu terapia com cachorros, a de Cornell criou um espaço onde serviam chocolate e a de Michigan reservou uma área onde estudantes passassem o tempo com livros para colorir.”
(Tenho dificuldade para acreditar nisso!!!)
Surgiu “uma geração de bebês chorões pedindo proteção aos mais velhos, recolhendo-se nos chamados “safe spaces”, com salinhas de brincar ao modo do jardim de infância. “Quando a feminista Wendy McElroy foi à Brown University discutir o sentido da “cultura do estupro”, estudantes montaram um “safe space” (espaço seguro) para quem precisasse “se recuperar” de seus argumentos. Infantilização e imbecilização. E psicólogos já denunciam que a “cultura do vitimismo” forma pessoas mais vulneráveis ao pânico, à melancolia e à depressão.”
Campbell e Manning lembram que “os identitários fantasiam que palavras atingem fisicamente as pessoas. A diferença entre violência verbal e violência física é abolida. E aqui emerge a novidade: ser vítima eleva o status moral das pessoas, que agora se funda na dor. É a sacralização dos ofendidos. Pessoas de tal forma feridas ou supostamente feridas pela vida que necessitam de “trigger warnings” (avisos de gatilho) e “safe spaces” protegendo-as de sensações de desamparo ou desespero.
“Ativistas estudantis reivindicam “trigger warnings” a respeito do conteúdo de certos cursos e aulas que podem abrir a tampa do trauma, requerendo inclusive que professores antecipem por escrito se vão falar de coisas como estupro ou sequestro em suas exposições.”
A onda assumiu dimensão absurda. “Em fevereiro de 2014, um estudante da Rutgers University escreveu um artigo reivindicando que gatilhos de advertência fossem anexados a romances e contos comumente adotados em cursos de literatura, como O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald e Mrs. Dalloway de Virginia Wolf, que conteria ‘uma narrativa perturbadora, examinando inclinações suicidas e experiências pós-traumáticas de um veterano de guerra’.” Discussões sobre racismo, desigualdade e intolerância poderiam também ser “deflagradoras”. A própria mitologia grega e as Metamorfoses de Ovídio foram condenadas, na Columbia University, em defesa de pessoas de cor e estudantes pobres em geral. Tudo com a maior seriedade do mundo, como se dessa idiotice cósmica dependesse a salvação da humanidade.”
Risério descreve os “safe spaces”, onde o grupo “oprimido” possa ficar a salvo de preconceito ou “microagressões”. “Pretos que vociferam contra a segregação racial parecem não perceber que um espaço só para si, proibido a brancos, também é segregação – expressão física de um apartheid. Só que não como imposição de fora, mas como reivindicação de dentro: autoapartheid.”
Jeannie Suk, professora de Direito de Harvard, alertou que ela estava impedida de falar sobre estupro. “Recentemente, um estudante pediu a um professor meu conhecido que não usasse a palavra ‘violar’ na sala de aula – como na pergunta ‘esta conduta viola a lei?’ –, porque a palavra era triggering”.
“Se quisermos atender as vítimas e o vitimismo, teremos de deletar a liberdade de pensamento e expressão. As vítimas e seus ideólogos querem silenciar toda manifestação que questione a cartilha identitária ou não teça loas às vítimas”, alerta Risério.
E Risério conclui: “Como disse Pascal Bruckner, ao se exibir como vítima, a pessoa adquire uma espécie de imunidade simbólica. E carrega suas opressões reais ou imaginárias como se fossem crachás de nobreza. É por isso que muito do que vemos por aí é indignação pré-fabricada e, não raro, lucrativa. Além de um mundo de infantilização e teatralização da condição de vítima, o que se está ensaiando diante de nós é o projeto de sociedade ideal do multicultural-identitarismo: uma sociedade segregacionista e ditatorial.”
Digo eu: surge um novo tipo de fundamentalismo, o fundamentalismo identitário.
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