sexta-feira, 20 de julho de 2018

Coisas que a gente não deve contar

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar



Há coisas que a gente não devia contar a ninguém. Coisas das quais nos envergonhamos tanto que são quase impensáveis, quanto mais compartilhadas. Porém, permanecem caprichosamente guardadas em nossa memória, passa o tempo e não se apagam. Até que em um belo dia resolvemos nos ver livre daquela pedrinha no sapato, que os gregos chamavam sabiamente de “escrúpulo”.
            Vamos à história, que começa com o sítio de nosso avô Breno, onde íamos todas as manhãs de domingo, o avô, nosso pai, meu irmão e eu, para ataques desesperos reclamações esbravejamentos de minha mãe que permanecia sozinha em casa todas as manhãs de domingo. Dizia que não gostava de roça. (Mas gostava de reclamar.)
             O avô era pessoa especial, talvez a melhor cabeça de toda a família, passada e presente, verdadeiro intelectual, professor de economia com livros publicados, porém no sítio dele não era capaz de nos dispensar a menor atenção, às voltas com o gado, a plantação, as galinhas, as formigas saúvas. Lembro-me dele e sua azáfama com aquele pequeno pedaço de chão, mais trabalho que prazer. Mas ele gostava de dizer que o comprara para agradar minha avó Ceci, a mulher a quem tanto amava. (Há coisas que a gente precisa contar.)
            Acordávamos bem cedo, os adultos na cabine da caminhonete, as crianças na caçamba – nada da superproteção tão em voga hoje em dia, os meninos que se segurassem –, estrada de terra poeirenta esburacada, Pé na tábua, gritava nosso pai animado. Abrir a porteira do sítio era a primeira façanha; mais alguns metros e estávamos na sede, casa-de-roça muito simples, varanda, sala, dois quartos, cozinha, banheiro, cômodos todos pequenos, uma pinturinha azul desbotada nas portas e janelas. 
O mais importante é que à frente da varanda havia um pequeno gramado, nosso campo de futebol, meu pai meu irmão e eu formávamos o time, todos a favor de todos. (Marcante episódio para o menino, foi quando em meio a uma jogada mais brusca meu pai não aguentou correr, parou, língua de fora, cansado mesmo, e então pensei Ele está ficando velho. De fato ele era moço, viveu muito ainda. O medo era meu.)
Quando a fome apertava havia o leite tirado na hora, do qual não gostávamos muito porque era quente espumoso. Mas o pai levava de lanche pão e banana para cada um. Certa feita o irmão inconformado perguntou, Não tem manteiga?, Come esse pão aí e não enche, menino, foi a resposta do pai, acompanhada de uma gostosa afetuosa risada.
Bem próximo à casa passava um corregozinho, água limpíssima e fria, leito de areia e pedras, piscina praia mar oceano para alegria dos meninos que se banhavam pelados.
Há coisas que a gente não devia contar. 
Em uma de nossas idas ao sítio o pai apareceu com espingarda calibre 22, marca famosa, culatra de madeira lustrosa, mira inigualável de tão calibrada, e uma caixa de balas de verdade. Próximo ao curral havia um pequeno açude, ladeado por elevação, onde colocávamos as latas e garrafas para o tiro ao alvo. Postávamo-nos do outro lado do açude, a uma boa distância, para o excitante impensável indizível prazer do tiro ao alvo com espingarda e balas de verdade.
Até que certo dia, já na varanda da casa, avistei belo pássaro de penas marrons, grande em comparação a pardais e cambaxirras, empoleirado sossegado em galho de arbusto não muito distante. Pedi a espingarda ao meu pai e ele ma deu. Foi um tiro só, certeiro, tombou o pássaro diante da descomunal violência para com sua natureza tão frágil, vi-o cair ao chão e ali permanecer inerte.
A confusão de sentimentos que se seguiu àquele ato insano permanece mais viva do que nunca. Por que? Para que? E agora? Mas está feito!
Há coisas que a gente não deve mesmo contar. Não havia culpa. Naquela época menino matava passarinho. Porém, após o tiro certeiro, nunca foi tão forte o sentimento de que aquilo era errado e que jamais deveria se repetir. Dos males, o menor.

O quarto poema

EL PAÍS publica o quarto poema da corrente lírica Hilda Hilst, poeta homenageada no evento literário. Indicada pela curadora da Flip, Joselia Aguiar, Josely Vianna Baptista começou a corrente que passou para Antonio RisérioRicardo Aleixo e agora chega na poeta gaúcha Eliane Marques. Sem título, o texto faz parte do livro e se alguém o pano.



resta na medula das coisas
ali onde sobram em conluio
os sapatos

se pudesse fraturá-las
deitá-las sobre a cama

se o crime alguém o intentasse somente com o pranto
mas tem lá o seu cavalo mouro um lenço para as louças
e outro (mais curto) às canecas de estanho

a negrinha dada aos serviços da casa
corpo que se aquieta no tropel dos infantes

corpo a quem se indefere
o bilhete de passagem
um corpo pequeno um corpo estranho

ao seu braço não basta a cabeça de piolhos
esmagá-los como castanha

esse braço dado aos serviços dos outros
tem lá o seu cavalo mouro seu ruído entre os zimbros
tem lá o seu cavalo mouro seu cheiro de crina
contra a força que se impõe às insistências do morto

a negrinha braço da casa
louça partida entre tantos

a negrinha dada aos serviços da casa
tem lá o seu cavalo mouro
eu disse: tem lá o seu cavalo mouro


“Eliane Marques, nascida em 1971, é gaúcha de Sant'Anna do Livramento, e tem formação em Pedagogia e Direito; atua como auditora pública do tribunal de contas do Rio Grande do Sul. De formação ampla, a poeta ainda estuda psicanálise e coordena a Escola de Poesia, vinculada à instituição de psicanálise Après Coup Porto Alegre Psicanálise e Poesia. Hoje em Porto Alegre, Marques ainda edita a revista Ovo da Ema. Seu primeiro livro de poesia, Relicário, foi publicado em 2009. Já e se alguém o pano, de 2015, ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura (categoria poesia -2016), organizado pela prefeitura da capital gaúcha.”